Arthur Gadelha
‘Estranho Caminho’ e ‘Greice’ se encaixam na tensão e no humor de ser estrangeiro
ENSAIO Filmes cearenses dividem espaço raro no circuito brasileiro falando de distâncias parecidas, mesmo com gêneros tão distantes
Quando venceu todos os prêmios no 22º Festival de Tribeca, algo inédito na história do evento americano, ‘Estranho Caminho’ parecia anunciar um grande chacoalho na carreira de Guto Parente. O cineasta cearense foi projetado nacionalmente na década passada como parte de um já extinto coletivo de cinema independente cujas peças, individualmente, aos poucos foram construindo seus próprios trajetos. A estreia comercial de ‘A Filha do Palhaço’ neste mesmo ano parecia criar também uma rima com fato de seu diretor, Pedro Diógenes, também ter feito parte do mesmo coletivo e estar hoje sob a roupagem de algo tão diferente.
Em certo grau, o filme de Guto constrói uma nova imagem sobre seu cinema até mesmo para nós, cinéfilos cearenses, que mesmo tão familiares ainda não conhecíamos uma camada sua tão íntima, sensível e mergulhada em dramas mais realistas, mesmo com um documentário emotivo lançado ano passado. A história, porém, de um filho em atrito com o pai enquanto é feito de refém pela covid-19, sabe encontrar seu grau comedido de delírio sobrenatural.
“É o cara que explode o gringo em Bacurau”, escutei alguém explicando quem era Carlos Francisco, aqui interpretando o pai, e que tem uma presença enigmática em tela – a forma como seu rancor emerge com naturalidade, permeado por humor e tensão, é a grande gravidade do filme. Já no seu segundo longa-metragem, Lucas Limeira assume a árdua tarefa de dividir cenas e diálogos que são sempre guiados por ele, o acontecimento indesviável.
Diferente desse contexto de surpresas e “novos rumos”, Leonardo Mouramateus anunciou seu novo longa-metragem sem causar grande expectativa – isso porque ‘Greice’, que estreou em julho nos cinemas brasileiros, parecia só uma extensão da sua brincadeira entre-nações. Como um estudante de cinema literalmente dividido entre Portugal e Brasil, seus primeiros longas refletiam exatamente isso – Antonio Um Dois Três (2017), do qual gostei muito ao ter assistido em plena pandemia, e A Vida São Dois Dias (2022), que me estagnou um pouco logo em seguida.
Quando venceu o prêmio de Filme, Roteiro e Atriz no 13º Olhar de Cinema, porém, algo parecia estar anunciado para além de uma mera continuação dos dois filmes anteriores. O que seria? Quando finalmente me deparei com o filme, em pré-estreia lotada no Cinema do Dragão com presença da equipe, senti imediatamente: era o humor. De forma geral, o dito “Cinema Cearense” não sabe administrar isso muito bem porque nosso carro-chefe são os filmes do Halder Gomes que começaram tão autênticos e se transformaram numa cidade cenográfica da Globo, reiterados por uma visão repetitivamente limitada de uma caricatura indissociável de algo sobre nós criado pelo imaginário do sudeste.
“Meio que é uma comédia”, disse Mouramateus quando estreou seu filme anterior também no Dragão, ano passado. A declaração soou mais engraçada que a própria história, cujo humor era constantemente engasgado e difícil de se relacionar. ‘Greice’, porém, é outra coisa, algo que o autor ainda não tinha até aqui. É um humor que parece eventual, efêmero, e que tem mesmo a cara do nosso cotidiano. Amandyra e Dipas, artistas que eu desconhecia como atores, parecem nascidos para esses personagens, atraídos por uma sinergia contagiante que explode discretamente sempre que estão juntos em tela.
Na trama, Greice “foge” da universidade que estuda em Lisboa após ser responsabilizada pela queima acidental de um item histórico do campus. Na busca pela regularização do seu visto europeu sem que esse incidente a deporte de Portugal, ela brota em Fortaleza na missão de passar desapercebida pelos seus conterrâneos, até mesmo da mãe.
Depois deste grande rodeio para apresentar filmes tão diferentes, que calharam de serem dirigidos por diretores cearenses tão presentes no cenário audiovisual do Estado no que talvez tenha sido seu primeiro grande momento de projeção nacional e internacional neste acelerado século XXI, chego no ponto central: a coincidência dessas duas histórias estarem mediadas por uma ponte afetiva e literal entre Fortaleza e Lisboa.
Em ‘Estranho Caminho’, David vem a Fortaleza participar de um festival de cinema que é cancelado por conta da pandemia. Ele vai reportando a estadia para sua namorada que mora em Portugal e, pela forma como conversa nostálgico com os amigos, vamos entendendo que ele não mora mais aqui. De certa forma, a relação arisca que ele tem com o pai entra em sintonia com a estranha sensação que ele precisa encarar ao se sentir estrangeiro na terra em que nasceu. Ele não parece ser bem-vindo nem pelo pai, nem pelo festival que o convidou, nem pela polícia alheia à sua crise e nem pelo hospital ao qual recorre. Ele, de repente, não parece dali.
Na tela, essa angústia ganha imagens disfarçadas de uma grande melancolia – seu rosto dourado no mar sob o pôr-do-sol, as frestas da janela que o alcançam como grades de uma cela, a casa encastelada vinda d’A Misteriosa Morte de Pérola (2014) – codireção com Ticiana Augusto –, além das próprias ruas vazias, escuras e sufocantes que parecem ter saído da solidão com que o Centro de Fortaleza aparece em Os Monstros (2011) – codireção com Pedro Diogenes e Luiz Pretti. Honrando seu próprio passado na criação imagética dessa Fortaleza, Guto também cria uma mensagem sobre ser estrangeiro diante das revoluções de seu antigo coletivo.
No filme do Mouramateus, por outro lado, Greice faz o caminho contrário. Ela acha que vai conseguir passar pelo Ceará como apenas uma “estrangeira”, ansiosa pelo momento em que vai resolver tudo e voltar para Lisboa, mas acaba sendo sugada por um turbilhão. Diferente da angústia de David, ela é constantemente acolhida, mesmo com toda sua dedicação para repelir o carinho que sente sobre a cidade e a vida que tinha – ou tem – ali.
A trama também reserva momentos mais sóbrios para essa dualidade, como o travelling sobre a máscara que esconde o choro de saudade ou a conversa secreta com a irmã debaixo da cama, mas o humor é mesmo o grande mediador dessa conversa. Numa equalização inversa, lembro dos breves momentos em que risadas discretas nos saltam em ‘Estranho Caminho’, como na sequência em que Noá Bonoba interpreta a ironia de uma policial despreocupada com a violência da cidade ou nas patadas que Geraldo (Carlos Francisco) dá diante das mínimas tentativas de aproximação feitas pelo filho.
Por si só, já é irreverente que esses dois filmes sobre o Ceará como um “lar estrangeiro” tenham lançamentos brasileiros no mesmo ano, contexto que se torna ainda mais curioso sabendo que em junho tivemos o já citado ‘A Filha do Palhaço’ e que em agosto teremos mais dois: ‘Mais Pesado é o Céu’, do Petrus Cariry, e o badalado ‘Motel Destino’, do Karim Aïnouz. Mesmo ano em que 'Quando eu me encontrar', de Amanda Pontes e Michelline Helena, ganhou sobrevida ao sair premiado do Festival de Cinema de Vitória, pronto para uma bela estreia comercial.
Os ventos são bons para o Cinema Cearense. No recorte desses dois que estão no texto, a viagem pode até nos lembrar o Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, mas sem aquele grande pessimismo dos anos 1990. Diante de todas as tensões políticas vividas por uma Europa cada vez mais simpática à extrema-direita, o Brasil ainda pode ser um bom lugar para estar, ironicamente, para aqueles que têm o cômico privilégio de poder escolher. Apesar dos lutos e das ameaças, das hegemonias e dos labirintos, como este que estamos agora numa eleição municipal perdida, lembramos que um país não é uma coisa, mas aquilo que o rodeia.
"Estranho Caminho" chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 01 de agosto
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