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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Na esperança de ‘Marte Um’, Gabriel Martins encontra um país sob os escombros

CRÍTICA Primeiro longa solo de Gabriel Martins estreia numa oportunidade de futuro

Quando Bolsonaro foi eleito em 2018, ainda quando eu estava ali diante da televisão, fiquei pensando se esse país ainda era meu, se eu, amigos e familiares ainda fazíamos parte dessa nação aparentemente tão fictícia. Apesar de ser publicamente “oficializado” naquele ano, o desastre da sobrevivência não era capítulo novo – do lado de cá, todos fomos testemunhas de um lentíssimo desabamento a olho nu. O que vai sobrar? Mesmo que seja símbolo desse suspense, Marte Um é o contrário de um assunto encerrado.


Como filho da Filmes de Plástico, essa história é tão honesta enquanto uma observação íntima – por parte de seu autor, Gabriel Martins – como também num recorte que enriquece a visão coletiva da própria produtora mineira. Assim como Temporada (2018), de André Novais Oliveira, e A Felicidade das Coisas (2021), de Thais Fujinaga, Marte Um (2022) é desses filmes raríssimos sobre o Brasil que realmente importa, muito acima das bandeiras, dos hinos, dos PIBs e dos deuses. Se há um Brasil que nunca existiu, que foi sempre "um sonho" – como anuncia Grace Passô em República (2020), também há um que insiste em se manter de pé.



Raro, não apenas por olhar para onde olha, mas pela naturalidade com que todas essas sensações são construídas. Com um elenco em assustadora sintonia, o filme os rodeia com situações que estão sempre os pondo em prova, em dúvida, e nos carregando para um lugar imprevisível de medo e esperança. Na trama, uma família negra de Contagem (MG) precisa lidar com seus sonhos de forma individual, estrutura preste a romper diante do volume de desacertos numa esfera alheia ao que está ao alcance de cada um. O pai que sonha em pagar as contas com segurança, a mãe que sonha com sua própria paz, e os filhos que querem ir embora – Eunice quer morar com a namorada e Deivinho quer... ir a Marte.


No Cinema Brasileiro contemporâneo, em especial nos curtas-metragens, circula essa sensação de que a humanidade alcançou o seu limite na configuração de uma sociedade de abismos, e que por isso a resposta está do lado de fora. Filmes como Sideral (RN), Inabitável (PE), Céu de Agosto (SP) e Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado Que Não Existe Mais (CE) traçam essa rota de fuga numa alternativa de temor e esperança diante da ironia progressista – como delirou Arnaldo Antunes: “Já chegamos muito longe, mas podemos muito mais, dizem... Encontrar novos planetas pra fazermos filiais”.



A pergunta de Marte Um, porém, não se preocupa com a resposta. Interessado em olhar para como as coisas “reais” caminham no mundo brasileiro, Gabriel Martins sabe que não há “lado de fora”, e por isso há tanta ambiguidade entre a vida e o sonho, a esperança e o pesadelo, equação aqui nunca erguida para resolver nada. O roteiro e a montagem compreendem que a missão aqui é “olhar de dentro pra dentro” e constroem o ritmo dissonante dessa família de tal forma a nunca perder velocidade, naturalidade, a discussão do que está acontecendo, criando uma sensação de intimidade com a plateia que facilmente sairá da sala com saudade de cada um dos personagens.


Rejane Faria e Carlos Francisco, excepcionalmente, são a alma de tudo o que acontece, movendo-se no meio de sensações tão particulares. A cena da explosão na pastelaria é o primeiro momento em que sentimos a ameaça no bem-estar de um Brasil sem fuga, e quem nos comunica isso frontalmente é o susto que pulsa no olhar de Tércia enquanto a câmera se aproxima do seu rosto em meio a fumaça – eliminando o tom da brincadeira, o filme vai nos empurrando pra esse lugar de suspense: qual o destino daquela família e de tantas outras?


A música pacata, a fotografia que explode à noite, as cenas que duram o suficiente para ganhar volume próprio (o jogo de cartas, o futebol, a queda, a rodoviária, a despedida), tudo trabalha ao redor desse efeito de quase-contemplação, camada que às vezes também pode se tornar muito quieta. O desejo do Davinho, por exemplo, é trazido em pinceladas modestas, mesmo que seja ele o dono do conflito mais revelador de todos. Ao mesmo tempo, sua posição de observador também nos comunica muito sobre a forma como o ritmo da casa ressoa em batidas distintas, sendo ele o único a ouvi-las cruzar entre si.


Quando olham para as estrelas, a família Martins está encarando os limites postos sobre o espaço que ocupam, mas sem deixarem a realidade e o sonho despregarem um do outro. Num ponto de equilíbrio, Marte Um se torna esse olhar delicado sobre o que é “estar vivo”, como revela Tércia num ato de libertação de sua própria maldição. O Brasil segue todo engasgado, troncho, violento e às vezes bastante bobo, mas há muita beleza por debaixo desses escombros. Que delícia ser lembrado disso, dessa forma, nesse filme, nesse momento.

 
 

Direção e roteiro: Gabriel Martins

Produção: André Novais Oliveira, Gabriel Martins,

Maurilio Martins e Thiago Macêdo Correia

Produção Executiva: Thiago Macêdo Correia

Produtora: Filmes de Plástico

Fotografia: Leonardo Feliciano

Montagem: Tiago Ricarte e Gabriel Martins

Direção de arte: Rimenna Procópio

Direção de produção: Luna Gomides

Figurinos: Marina Sandim

Som: Tiago Bello

Trilha sonora: Daniel Simitan





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