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Não se preocupe, Bob Dylan, só a vaia consagra

Rafael Brasileiro

Bob Dylan é apresentado ao público na cinebiografia ficcional "Um Completo Desconhecido". Mas o Bob Dylan que você viu foi o mesmo que eu vi?

Num dia qualquer, no começo da década de 1960, não se sabe bem se num banheiro de bar ou na vitrine de uma loja em alguma esquina de Nova Iorque, Robert Zimmerman olhou-se num espelho. O que o jovem rapaz, recém-mudado para a maior cidade dos EUA, viu refletido? Uma página em branco, uma chance de recomeço. Para o conjunto de elementos que preencheram essa página, fossem palavras, imagens e sons, Zimmerman chamou de Bob Dylan. E, com isso, passou de um deslocado a um descolado em sua meteórica ascensão como músico e figura pública.


Bob Dylan é um dos compositores mais influentes do século passado, com mais de quarenta álbuns lançados em seus mais de 60 anos de carreira. Para que se tenha uma leve noção do escopo dessa influência, vale destacar que artistas nacionais como Caetano Veloso, Gal Costa, Vitor Ramil, Lenine, Adriana Calcanhotto, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Ednardo interpretaram composições dele. O livro vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro do ano, em 2023, foi Engenheiro Fantasma, de Fabrício Corsaletti, no qual o autor se imagina na pele de Bob Dylan.


Bob Dylan é um mito, uma invenção.


É a criação de Zimmerman, o Bob Dylan, interpretado por Timothée Chalamet, que assistimos a em “Um Completo Desconhecido”, do diretor James Mangold. O filme está concorrendo em oito categorias diferentes do Oscar, incluindo melhor filme e melhor direção. Embora não seja favorito a nenhuma das estatuetas, Chalamet venceu o SAG de Melhor Ator neste domingo, 23, uma grande conquista no cenário americano.


Tanto no filme quanto na vida, Bob Dylan é um espelho. O que se reflete no espelho depende de quem está a olhar. O que você vê? Um compositor de canções de protesto e desilusões amorosas? Um músico misterioso e taciturno, de roupas estilosas e cabelos desgrenhados? Um romântico criativo e apaixonante? Ou um magrelo antipático, infiel e narcisista?


O personagem de Timothée Chalamet toca na hora de falar e fala na hora de tocar. Pilota uma moto em alta velocidade, tarde da noite, enquanto usa óculos escuros. É incapaz de passar café por si só e mantém o hábito de fumar ainda em jejum. Canta em voz alta ao lado de pessoas dormindo. É capaz de trair e, aparentemente, não sente nem demonstra remorso. Em determinado momento ele desabafa com um conhecido:


— 200 pessoas naquela sala e todos querem que eu seja outra pessoa. Deveriam só me deixar ser.

— Deixar você ser o que?

— O que eles não quiserem que eu seja.


Entendemos, então, o que podemos esperar desse artista tão imprevisível: que seja contestador, birrento, do contra. Não é à toa, então, que tenha se tornado ícone da contracultura norte-americana.


O filme, de maneira sagaz, não oferece uma resposta definitiva em relação à pergunta: Quem é Bob Dylan? O projeto opta por apostar numa miscelânea de cenas que compõem um caleidoscópio desse personagem, evitando endeusá-lo e, ao mesmo tempo, reconhecendo a força e influência de suas letras. O que temos, então, é um personagem que busca reinventar a si mesmo e, no processo, reinventar a música.


Para além do personagem que intitula o filme, há uma série de personagens icônicos do mundo da música folk e pop norte-americanos: Joan Baez (Monica Barbaro) Pete Seeger (Edward Norton), Woody Guthrie (Scoot McNairy) e Johnny Cash (Boyd Holbrook). Se esses nomes são familiares para você, poderá se divertir ao vê-los cantarolando com seus respectivos maneirismos. Se você não conhece tais músicos, não se preocupe, poderá se divertir com as idiossincrasias dessas figuras tão únicas do mundo da música.

É possível, porém, apontar algumas fragilidades do filme. A que mais chamou a atenção foi o quão limpo, clean, a representação dos anos 60 o é. O próprio Robert Zimmerman confirma que, durante a década de 1960, fez uso de anfetaminas, maconha e LSD, substâncias que não são nem mesmo mencionadas. Perde-se, assim, a oportunidade de complexificar ainda mais um personagem tão rico e que, como todo popstar, tem sua vida pessoal extensivamente pesquisada e documentada.


O filme também repete alguns cacoetes de cinebiografias musicais, como introduções soberbas e burocráticas de figuras públicas; a típica cena das tietes correndo atrás do protagonista famoso, gritando exageradamente — reencenado exaustivamente desde a beatlemania; o público, durante quase todas as performances, entra em êxtase absoluto, como se estivessem a transcender.


O filme encerra numa interessante cena durante o festival de música folk de Newport, em 1965, quando Bob Dylan fez a sua primeira apresentação usando uma guitarra em vez de um violão, numa mudança sonora que, na época, causou polêmica entre seus fãs. A cena, que me fez lembrar a frase clássica de Nelson Rodrigues “Só a vaia consagra”, sintetiza o conflito principal desse personagem: suas músicas agradam, mas ele é, sem rodeios, desagradável.

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