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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Carranca: o cancioneiro dos sertões de Bacurau

Vidas atravessadas, memórias do Nordeste


Rodger Rogério, sob a pele do violeiro Carranca, protagoniza alguns dos momentos mais emblemáticos de Bacurau que só existem pela difusão fluida de personagens que os roteiristas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles apostaram para contar a história desse povo: uma cidade onde a história, as casas, as pessoas e os bichos são como um só corpo que reage.

O som de Carranca surge antes de sua imagem, quando Teresa adentra a casa onde acontece o velório de Carmelita, sua avó e matriarca daquele povoado. Ressoa por ali um tímido som de violão, entregando ao momento uma breve sensação de mistério, dor e sobriedade. A morte dessa senhora significa muito para o povo de Bacurau, principalmente porque sua memória está viva em cada um daqueles que dividem a sala apertada que precede o quarto onde seu corpo repousa.


Quando Teresa se aproxima da avó, finalmente Carranca é revelado – está só, no canto do sofá, de chapéu e óculos escuros, travando uma batalha entre seus dedos e as cordas ao evocar um som agudo distorcido da realidade. Ele não toca para aquelas pessoas na sala, que sequer se viram para vê-lo, mas toca talvez para Carmelita, num momento sedutor de introspecção aos sentimentos de compaixão que tanto sobrevive a trama do filme.


É Carranca quem lidera a multidão no cortejo pela terra quente do sertão, enquanto canta “Bichos da Noite”, canção de Sérgio Ricardo que parece tradição nos velórios de Bacurau. Há um mistério na sua existência, porque ele perambula pela cidade com o velho violão debaixo do braço tocando como se estivesse sempre num estado de reflexão sobre o espaço e seu pertencimento.

Mais à frente, quando os sudestinos chegam em Bacurau causando desconfiança imediata pelo sentimento de invasão, a cidade permanece em alerta. Quando estão de saída, Carranca surge inesperadamente perguntando numa canção improvisada se sabem algo sobre o caminhão-pipa que chegou baleado. Assustados, eles parecem fugir. Mas Carranca os segue, compondo uma nova canção sobre um “povo de São Paulo” que aprendeu a pescar “sem isca e anzol”, motoqueiros de trilha do Sudeste que passam por uma cidade do interior como peças estrangeiras.


A forasteira lhe oferece 20 reais pelo “show”, mas o violeiro conclui seu verso: “Não quero seu dinheiro, moça! Estou aqui só de gaiato” – Carranca e Bacurau não querem esmola. Enquanto os motoqueiros se envergonham, a cidade se diverte. Sobem nas motos e partem veloz, subindo a poeira sobre o bar da esquina onde Carranca surge novamente – desta vez sentado de frente a um copo de cachaça, dedilha rapidamente sobre as cordas como se o som agressivo os expulsassem daquelas terras.


Adiante, o personagem surge ao fundo como se fizesse parte da paisagem. Quando chegam corpos mortos na cidade, levanta-se da cadeira de balanço junto do violão para ver o que está acontecendo. Nos últimos planos do filme, está lá, de pé, sob a “tumba” que a cidade enterra o inimigo. Sua arte é o som que surge a partir da cidade que pertence.


Personagens como o de Rodger vivem pelos sertões nordestinos cantando sobre o eco da própria resistência ao ser parte de um chão seco, desassistido pelo poder público, e por isso guerreiro de forma literal. Para vivê-lo na tela de Bacurau, Rodger é essa figura completa – o cantor que amadureceu a música no Ceará e, que, ainda hoje, canta como jovem no EP recém-lançado “Menino Velho”.


Já compôs com Belchior, Ednardo, Teti e Fagner, grupo que protagonizou o “Pessoal do Ceará”, movimento artístico que o Ceará viveu nos anos 1970 à espelho da Tropicália e do Clube da Esquina. Peça desse sertão nordestino, Rodger é Carranca na vida real, tendo participado como ator e compositor em mais de 40 filmes, entre curtas e longas, trazendo para Bacurau uma metáfora explícita à sua devoção de música e sertão. Na música “Chão Sagrado”, composta por Rodger e Belchior em 1974, entoa versos que poderiam estar (e estão, de outras formas) no faroeste pernambucano:

Você conhece o Nordeste Morro Branco e Quixadá Palmilhou seu Chão Sagrado Por isso pode falar

Minha viola e meu peito Canta e nunca desafina Ela que sabe dos mortos Da cantoria nordestina


Os pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, engajados nessa cultura popular do Brasil, tinham em mente que era dessa imagem quase mitológica que a história e Carranca precisavam. Foram eles que ligaram pessoalmente para tragá-lo a Bacurau, convidando-o para viajar diretamente a Parelhas, cidade no sertão do Rio Grande do Norte onde filmaram essa história de resistência por longos dois meses. Rodger Rogério comemora, em 2019, 75 anos de idade com um EP tão forte na memória do Nordeste quanto seu violeiro de uma cidade que desapareceu do mapa.

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