‘Aftersun’ e ‘A Filha do Palhaço’ separados pela consciência da melancolia
ENSAIO Entre pai e filha, o duelo para se aproximar e se esconder um do outro
Enquanto pensávamos sobre a distância nunca realmente filmada entre Sophie e seu pai em Aftersun (2022) - que quando juntos dividem o mesmo ritmo, mas quando separados mergulham em dúvidas silenciosas -, um amigo na roda de conversa lembrou que esse conflito lembrava muito do humor e da narrativa de A Filha do Palhaço (2022), filme cearense em que pai e filha também duelam na confusão de entrar um na vida do outro. Achei intrigante essa aproximação de filmes aparentemente tão "distantes" de contexto, lógica e pulso, mas fascinado pela linha delicada que divide essas duas relações: o quanto uma parte está consciente da outra, o quanto cada um está disposto a perceber, entender e reagir à uma solidão incontornável, mesmo que suas existências estejam inevitavelmente atravessadas.
"Pensei ter ouvido você rindo
Pensei ter ouvido você cantar
Eu acho que pensei ter visto você tentar
Mas aquilo foi apenas um sonho
Tentar, chorar, por que tentar?
Aquilo foi apenas um sonho
Apenas um sonho, apenas um sonho, sonho"
Losing My Religion (R.E.M.)
Quando a criança se vê abandonada pelo pai na missão de cantar Losing My Religion no karaokê, o que culmina numa dramática separação ao longo da madrugada, chega até nós uma sensação muito inquieta. I thought that I heard you laughing... Aos 11 anos, Sophie está vendo o pai reagir a algo que ela não compreende, ou supõe, porque ele não a deixa o ver desmoronar. A forma como Paul Mescal constrói esse peso é comovente, conseguindo comportar seus sorrisos, seus olhares e as conversas, tornando essa relação tão afetuosa quanto contraditoriamente limitada de sinceridade. Sem a guarda da filha, Calum está aproveitando uns dias na sua companhia enquanto curtem as férias num hotel à beira da praia - o lugar é uma espécie de "limbo", distante da realidade e por isso tão suspenso de suas próprias vidas cotidianas. Quem eles são fora dali, não precisamos saber.
Nesse passado, claro, Sophie nunca enxerga qualquer fragilidade. "Aos 11 anos o que você pensava que estaria fazendo hoje?", ela pergunta enquanto anuncia para a câmera seu pai chegando aos 30 anos. Há um incômodo e ele pede para que ela desligue. Na pele dessa pequena personagem, Frankie Corio é uma revelação porque sabe construir um "peso" nem tão diferente: o de ser jovem e tentar entender seu futuro, mesmo que com medo e curiosidade, tentando abandonar a inocência. Lembro da garota de Pequena Mamãe, da Céline Sciamma, que pergunta ao pai sobre os medos que ele tinha quando criança. Ele não responde e ela retoma com naturalidade sem qualquer intenção inquisidora: "você esqueceu?".
No longa cearense, Joana se reaproxima do pai que a abandonou há muitos anos - presença que, por si só, já é esse "acerto de contas" entre duas forças muito distantes. Sustentando-se com shows para turistas na pele de uma personagem bem-humorada, Renato encara sua existência com uma melancolia explícita - Démick Lopes, vencedor do Troféu Mucuripe de Melhor Ator no Cine Ceará pelo papel, é sutil nessa condução de alguém que não tem para onde correr. Sua filha, que vive numa realidade socioeconômica diferente, aproxima-se sem saber como. Ou seja, claro que Aftersun e A Filha do Palhaço são filmes muito diferentes, mas suas relações familiares centrais orbitam sobre a mesma dúvida que uma parte tem sobre a outra, nunca com tanta consciência.
Enquanto Joana aos poucos vai se afeiçoando a realidade de seu pai, Sophie vive aqueles dias na praia confiando na proteção inabalável de Calum, o jovem sorridente que poderia ser confundido como seu irmão mais velho. Por outro lado, teoricamente mais imersos na realidade, esses pais também custam a ter tato com as transformações pelas quais suas filhas estão passando. Sophie e Joana estão sempre numa pose de autocontrole, de que não precisam mais de ajuda para compreender o mundo, enquanto eles estão na margem dessas questões vivendo conflitos alheios e quase secretos.
Desse emaranhado de sentimentos, rumos e desejos, a estreante Charlotte Wells consegue construir uma emoção em Aftersun que comove mesmo com pouco volume, mesmo dizendo tão pouco sobre o que está realmente acontecendo. Além das performances, o que impulsiona essa condução interminável da melancolia é a cara de uma memória ofuscada - a montagem cruzada de "arquivo" e ficção, os planos às vezes descentralizados e sempre frios, e a trilha sonora que alterna entre contemplação e suspense.
Demora para descobrirmos a razão deste não ser um filme sobre o pai, mas sobre a filha. Para além do que constata naquele presente, ela só consegue ter vislumbres ou suposições diante daquele sofrimento tão silencioso, viajando pelo tempo por meio de flashes numa energia de carinho e lamento próximo daquele Sean Penn em A Árvore da Vida (2011). A mesma memória que a leva de volta para o pai é a que a leva para perto de si, numa inocente imersão na descoberta de sua própria identidade. Sophie olha para trás recorrentemente sob as mesmas imagens, sons e delírios, quem sabe na busca de uma reconciliação que não teve chance de oferecer. Assim como em A Filha do Palhaço, o tempo é sempre muito pouco - e injusto.
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