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Foto do escritorArthur Gadelha

‘First Cow’ sonda os templos pessoais de Kelly Reichardt na intimidade do seu cinema

★★★★★ Com estreia tímida, novo filme Kelly Reichardt é de uma raridade imensa em meio à tanta velocidade e engasgo da indústria dos EUA



Quando integrou o júri de Cannes que premiou Bacurau, em 2019, dificilmente Kelly Reichardt encontrou, em algum dos 21 filmes em competição, alguma centelha sequer equiparável com os elementos que definem - e marcam - o tempo do seu cinema. Dos premiados então, muito distante do ritmo frenético de Parasita ou Os Miseráveis, talvez apenas Retrato de uma Jovem em Chamas, da Céline Sciamma, compartilhasse de certa devoção à experiência sensorial em torno da forma como personagens interpretam os gestos dos mais mínimos como grandes confidências de afeição.


Claro, não é o papel de um jurado buscar o cinema em que mais se assemelha para premiar (por mais que Tim Burton e Isabelle Huppert aparentemente o tenham feito em Cannes), mas a questão aqui é apenas demarcar que o cinema construído com minúcia por Kelly Reichardt não se encontra por aí na tela de qualquer esquina. Silencioso e quieto de tal modo que está muito mais próximo às observações religiosas de Frederic Wiseman do que de quaisquer ficções estilizadas. Em 2021, após longo período de espera, seu último filme First Cow finalmente encontrou um circuito reduzido no Brasil, tanto em salas de cinema quanto no streaming da Mubi que fez o favor de apresentar outras quatro de suas obras. Vistas em conjunto, está claro que tudo o que traça e define a sua forma de mostrar, montar e contar histórias está concentrada em First Cow da maneira mais efusiva possível.


Na trama, Cookie e King Lu formam uma dupla improvável de amigos que caminham pela América do século XIX com a pulsante percepção de que aquela terra não os pertence, de que a eles cabe a aventura de se sentirem sozinhos. Ao redor, o subtexto da procura pelas ditas promessas comerciais certamente circunda tudo aquilo que os EUA viriam a se orgulhar - a terra das oportunidades, o futuro promissor. O cozinheiro de uma expedição de caça e um foragido sem destino, porém, entregam-se às expectativas de um no outro, e é exatamente aí onde Kelly surge para dar o ponto dessa história. Por quê ela conta essas coisas? Por quê a delicadeza é tão importante para afirmar a consistência natural de seus personagens? John Magaro e Orion Lee encarnam essas figuras perdidas de forma a nos fazer acreditar, sem alarde, que se encontraram.


As coisas quietas são imensas, quase como supor o bater de asas de uma borboleta como ato originário de um furacão do outro lado do planeta. Em Wendy e Lucy (2008), Michelle Williams não precisa se contorcer para explodir sua tensão diante do desaparecimento da cadela. Ao contrário disso, é na forma silenciosa como Wendy reage ao mundo que podemos senti-lo despencar - as sequências da floresta, da mecânica e da grade, são desses exemplos imensos que se resolvem com poucas ações, gestos e palavras.



Ainda assim, não é como se Kelly "se rendesse" à simplicidade desses atos e se tornasse passiva à experiências técnicas, porque sua equipe se apropria disso para compor fotografia, som, figurino, etc, de forma igualmente cuidadosa. É tudo tratado como na poesia de Fernando Pessoa, "como se cada pedra fosse todo o universo e fosse por isso um perigo muito grande deixá-las cair no chão".


Em Antiga Alegria (2006), já é a ausência de gestos, e seu silêncio imposto, que conduz a trama. Esses amigos estão em contextos tão distintos em suas próprias vidas, que se reconhecer um no outro implicaria lembrar do que ambos eram e deixaram de ser. Um conflito charmoso. Numa viagem à dois, ambos se percebem distantes mas não precisam que isso seja um fato a ser enfrentado ou superado. É a vida deles. É o que aconteceu. Eles permanecem até o fim da jornada desajeitados e inseguros, mas não é também como se quisessem fugir já que, em algum nível, ambos querem estar ali. Para além do roteiro e das atuações contidas, a forma e o ritmo dessas "descobertas" dão o tom do que é encarar o tempo.


Aqui já podemos definir outro de seus elementos, que são personagens que sempre estão em fuga como se isso fosse uma decisão consciente. Tal qual os amigos que não se encaram mas aceitam a viagem e a mulher em busca de um emprego que se vê obrigada a permanecer, as três personagens de Certas Mulheres (2016) investigam essa sensação de mudança.


Lembro bem de como saí da sala após sessão de First Cow, calado, extasiado e completamente envolvido com a história de uma amizade que, improvavelmente, sobrevive. Quando esses dois solitários se unem, decidem roubar leite da única vaca da região e produzir deliciosos bolinhos de chuva. É essa a história. Também tem sua gravidade, seu desequilíbrio, além da amizade, e tudo isso está na forma como o filme começa e como termina, nos dias de hoje, um salto inesperado e inesquecível.


É tudo tão íntimo e real, que as coisas ao redor corroboram para essa imersão. Esse sentimento cordial de uma esperança velada ultrapassa seus personagens para caber nas belíssimas paisagens, nas árvores, na neblina, na luz da noite, uma forma muito pessoal de contemplar a natureza contraditoriamente aconchegante dessa solidão. Sâo filmes quase meditativos, do acaso e do tempo. O cinema da Kelly Reichardt é de uma raridade imensa em meio à tanta velocidade e engasgo da indústria dos EUA, me levando para Bela Tarr quando disse que está "interessado no mundo e não apenas em filmá-lo". Kelly vê o mundo diferente e nos conta, em silêncio.


- Vejo algo nesta terra que nunca vi antes. Praticamente todos os lugares já foram tocados. Mas isso aqui ainda é novo, há mais coisas sem nome por aqui do que você consegue imaginar!

- Não me parece novo. Parece velho

- Bom... Tudo é velho se você olhar dessa maneira

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