Arthur Gadelha
‘1899’ e ‘Dark’ engatam na equação e tropeçam na resposta
crítica Construídas num mesmo ritmo de mistério, séries compartilham avanços e tropeços. Os spoilers abaixo, claro, estão aos montes.
Parece indiscutível a percepção de que Barah bo Odar e Janjte Friese sabem construir mistérios e reciclar ideias, elementos cruciais no entretenimento seriado e que por isso muitos showrunners penam a elaborar. A primeira temporada de Dark (2017) é um exemplo muito bom para constatar isso. O desaparecimento de crianças numa pequena cidade vai escalonando de forma tão inesperada que, de repente, faz a volta quando nos revela a gravidade de seu tema central: viagem no tempo. Mesmo que isso seja bastante recorrente na ficção científica, em Dark, numa trama recheada de personagens com relações bastante intrigantes, isso até parece "coisa nova". Tem seu charme, seu próprio critério e, principalmente, um humor sombrio e um conjunto de interpretações bastante pálidas na condução de uma história que sabe ser "secreta". Misturado com a força afetiva que vamos ganhando aos poucos sobre cada um, a "origem" do pai de Jonas chega no espectador com uma força imbatível. Mesmo que deixe muitas perguntas a serem respondidas, a temporada consegue nos abandonar com satisfação e aflição, lado a lado. O que foi revelado até ali, afinal, impressiona.
De modo até bastante semelhante em ordem de revelação, a nova série 1899 tem uma primeira temporada bem mais contida que o projeto anterior. Não consegue construir uma teia tão envolvente de intrigas, dúvidas e tensões entre os tripulantes daquele navio tal qual fez na cidadezinha alemã, mas a completa ausência de contexto sobre a natureza do mistério faz o conflito largar de forma intrigante. Emily Beecham e Andreas Pietschmann, especialmente, seguram esse segredo e seguem até o fim sendo as únicas interpretações realmente volumosas de toda a temporada. Assim como Dark, porém, a comoção despenca quando o mistério vai se abrindo e ficando cada vez mais parecido com as tramas de alienação tecnológica que vimos antes.
Na série alemã, vimos uma trama tão intimista, urbana e - principalmente - humana, transformar-se num épico de "grande escala" sem gravidade ou graça da consequência. Surgem outros mundos, inimigos e realidades paralelas, e a tentativa de impressionar numa resposta abertamente reciclada vai afastando cada vez mais tudo o que tornava sua origem tão fascinante: o afeto e a intimidade. As Marthas, os "filhos", Adão e Eva, o Mundo B, a máquina... vai ficando tudo tão grande quanto distante, sem emoção, envolvimento, impacto ou respiro. Vira um compilado de ideias da ficção científica, da física, da matemática, no interesse de calcular equações atoladas de CGI plastificado que, ao preço de perder a organicidade, pelo menos garanta uma explicação.
Em 1899, o segredo do navio desaparecido que se contacta com outro em curso me consome imediatamente - especialmente após o episódio em que ele some novamente, sob nossos olhos, como se tivesse implodindo em pleno oceano. Somado aos constantes flashbacks, as cartas e detalhes, as teorias viajam do Triangulo das Bermurdas ao questionamento da própria realidade. Mesmo que poucos personagens ultrapassem a própria caricatura, o mistério comove. A fotografia soturna, as interpretações desconfiadas, o contexto histórico que nos faz pensar em hierarquia social, moral e econômica, entra no balaio de uma narrativa bem amparada de reações. Ali pela metade, porém, quando vai se desenhando a natureza do segredo, tudo cansa.
"Não sei se elas estão mesmo morrendo", revela Maura quando vê os passageiros se jogarem ao mar como zumbis, deixando muito claro que estamos diante de uma frouxa inspiração das histórias cibernéticas. Não surpreende que o desfecho da temporada seja tão obviamente espelhado no plot humano de Matrix (1999), na esfera de uma simulação cujo código foi escrito para impedir sua fuga. Assim como em Severance (2022), série explosiva da Apple que é de longe o destaque do ano, Maura vai ganhando importância na revelação por fazer parte diretamente da resposta - um clássico lado de cá lutando contra o de lá, inconscientes um do outro.
Assim como as viagens no tempo vão se sucateando em Dark, as idas e vindas sobre o "passado" e os ambientes individuais simulados vão se repetindo. A jornada é até interessante, mas a que é deixada dentro do navio com uma penca de personagens tediosos não poderia ser mais frágil. À primeira temporada, Barah e Janjte preferiram revelar de cara a intenção "macro" do mistério, deixando clara as inspirações e o foco de uma narrativa labiríntica - mas, felizmente, nada garante que essa lógica seja mantida nos próximos capítulos. No futuro em que Maura acorda, afinal, não sabemos para qual outra grande resposta os escritores irão zarpar. Tomara que o façam, mesmo que ao preço da insensível megalomania, porque voltar ao navio só vai esgotar uma emoção que já estava com dificuldades para se manter de pé.
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