Arthur Gadelha
Olhar de Cinema: A coragem de fazer cinema em "Zinder"
CRÍTICA Ousada investigação de Aicha Macky enquadra uma desequilibrada equação de oportunidades e descasos
Quando o plano-sequência de um corpo marcado por cicatrizes se intrinca com o panorama de uma terra escavada, a narração tensa calcifica já perto do fim um discurso nada estático diante das consequências do menosprezo estrutural sob a construção identitária de um povo. O que a nigerense Aicha Macky propõe aqui, nessa atípica e assustadora observação de parcial realidade de sua terra natal, é o funcionamento de uma sociedade condicionada à sobrevivência no limite das condições econômicas e psicológicas.
Focando em Kara Kara, distrito de Zinder conhecido pela "morada dos marginalizados", a diretora se aproxima sem muita cerimônia de integrantes dos "palais", grupos que agem como gangues formados pela violência num treinamento para reagir, contraditoriamente, à sua presença. A direção desse documento está, principalmente, na naturalidade com que esses personagens contam suas histórias na consciência do contexto em que estão inseridos e na vaga possibilidade de esperança. Apesar do que revela, e por vezes é árduo manter os ouvidos atentos, seus depoentes nunca se sentem ameaçados nem por Aicha e nem pelo dispositivo que dá origem ao filme - isso porque não importa se a câmera está na rua enquadrando suas rotinas ou numa sala escura montada para a pose tradicional do documentário, a fala é sempre direta e sincera.
Apesar dos letreiros iniciais revelarem que o próprio grupo concordou em revelar seu mundo para que essa dinâmica pudesse "contar suas histórias", a audiência pode não estar preparada para o que realmente é dito em seguida. Já na primeira cena, a aparição de uma flamejante bandeira com o símbolo nazista não impressiona mais que a revelação de que ela representa o grupo em homenagem a Hitler, "um cara americano; um guerreiro invencível". Em seguida, assistimos esses homens em seu recanto de conforto, treinando os músculos e trocando ideias abertamente. Nesse ponto, constrói-se então uma condição incontornável sobre a exclusividade dessa história existir desse jeito, sem a preocupação de que as coisas ditas possam implicá-los sob a própria justiça local. Ao conversar com Cikara sob a face das grades de uma prisão, ele denuncia a instabilidade do próprio conceito do crime, esse que não importa verdadeiramente para a dita justiça que supõe-se gerenciar a estrutura da violência.
"Quando alguém trabalha com contrabando, é porque está sem trabalho", comenta Ramatou, que se desloca rotineiramente para a fronteira com a Nigéria para reconduzir galões ilegais de gasolina, ofício que, apesar do risco, não a impede de acordar aflita com sua instabilidade financeira. Tendo consciência de que esse é um dos conflitos principais e mais significativos, inclusive pelo não-binarismo da personagem revelar outra dinâmica de repressão social, Aicha dedica sua missão a acompanhá-la até mesmo no ato clandestino.
Dessa forma, portanto, colocando seus complexos personagens ao centro das próprias discussões, Zinder vai destrinchado por dentro um atípico debate sobre imigração, violência, desemprego, vulnerabilidade feminina e educação, tudo sob a ótica de uma cidade que não oferece solução para além do estereótipo imposto por quem olha de fora. Então as ruas movimentadas no dia e à noite, alinhadas a uma trilha sonora contida, dão o tom de certa melancolia na investigação em vão dos possíveis planos de fuga. Certa de que a proximidade não torna seu filme cúmplice, e de que muito menos encontra respostas, Aicha Macky constrói um filme áspero e por vezes inacreditável, pondo à prova dois atos surpreendentemente corajosos: o de fazê-lo e, não menos importante, o de assisti-lo.
Essa crítica compõe a cobertura do 10º Olhar de Cinema
★★★★
Direção: Aïcha Macky
Roteiro: Aïcha Macky
Produção: Clara Vuillermoz
Fotografia: Julien Bossé
Montagem: Karen Benainous
Som: Abdoulaye Adamou Mato
Música: Dominique Peter
País de Origem: Níger, França, Alemanha
Ano: 2021
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