Stalking Chernobyl: cultura da tragédia
CRÍTICA Em exibição na 10ª Mostra Ecofalante, documentário observa a persistente cultura imagética do acidente nuclear de Chernobyl em 1986
Esse é daqueles raros filmes que conseguem ser novos mesmo depois de tanta coisa já dita sobre o assunto que investiga. Afinal, passados 35 anos desde que uma exposição radioativa obrigou o abandono súbito de toda uma cidade em duas horas, foram muitos documentários, reportagens, fotografias, vídeos e relatos produzidos sob as intenções mais distintas. Aqui, Iara Lee constrói o ponto de vista das pessoas que se apropriaram desse trauma ambiental, social e urbano para explorá-lo artística e comercialmente.
Ainda nos primeiros dez minutos, dedicados à uma breve recapitulação do acontecimento, surgem imagens de arquivos muito curiosas e, em certo grau, até bastante íntimas do que era a experiência de existir naquela cidade antes do caos. Junto às conversas, essas visões sensificam o modo como estamos invadindo as memórias de um ambiente tão fantasmagórico e somos levados a explorar lentamente algumas práticas que se desenvolveram ali na expectativa de "fazerem parte da história". Iara se prova criativa no cruzamento desses elementos, começando sobre o que parece mais importante na perpetuação da cultura imagética: a documentação audiovisual, como ela mesmo está fazendo.
Imagens da cidade pipocam sobrepostas de vários projetos antes e depois da tragédia, colocando em curso a ironia então vendida sob a esperança de um desenvolvimento energético em sintonia com a civilização. Essas imagens mudaram muito, e a cultura em relação a interpretação daquele espaço também. "Era quase um dever dos cineastas documentar o momento e guardá-lo para gerações futuras. Era uma abordagem positivista", revela um entrevistado.
O filme se sucede apresentando outras intervenções humanas como escaladores, fotógrafos, pintores, guias turísticos e os famosos stalkers, seguimento mais interessante do documentário. Por isso não é bem uma surpresa quando cenas de Stalker (1979) surgem nos créditos finais para Iara anunciá-la tanto como uma das precursoras da tragédia, quanto como uma das principais inspirações que a fizeram se tornar cineasta na busca de entender as pessoas e o mundo ao mesmo tempo.
A começar pelo título, Stalking Chernobyl, a cineasta (brasileira, inclusive), age tal qual uma stalker, guia clandestino que conhece bem os perigos da radiação e proporciona uma viagem por terrenos proibidos. Se no filme de Tarkovski para encontrar uma sigilosa fonte dos desejos, no filme de Iara para observar a aspiração humana de viver o limite, de vencer a condenação que deu a si mesmo. Em uma cena, um grupo de stalkers jantam numa casa abandonada e podemos ver uma árvore da natal, montada naquela sala há três décadas.
Além de documentar essas ações contemporâneas, a narração encontra um delicado espaço próximo ao desfecho para trazer de volta a memória dos humanos que experimentaram a "mitologia" daquele espaço por obrigação e negligência: os bombeiros, enfermeiros e demais agentes que tiveram suas vidas encurtadas pela exposição à radiação. Além de Tarkovski, Iara dedica também sua investigação a esses, cujo sacrifício foi imposto.
Apesar de durar menos que uma hora, Stalking Chernobyl parece bem maior pela quantidade de informação que consegue condensar numa exposição que, ao mesmo tempo, não encerra o assunto. Tendo o passado como base de presságio e reflexão, esse brevíssimo documento cumpre um importante de papel de reciclar as discussões para torná-las eternamente contemporâneas; afinal, a história desse nosso mundo com a energia nuclear nunca deixou de ser ameaçadora.
★★★★★
Direção: Iara Lee
Produção: Iara Lee
Fotografia: Anton Fedorko, Yuriy Vovchko e Volodymyr Kolbasa
Edição: Dimo Petkov
País: Ucrânia, EUA, Bulgária e Eslováquia
Ano de lançamento: 2020
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