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  • Foto do escritorArthur Gadelha

As ruas, casas e cinemas assombrados de ‘Retratos Fantasmas’

★★★☆☆ | Assim como seu primeiro documentário, Crítico (2008), Kléber Mendonça Filho parte numa viagem pessoal para pensar o mundo à partir de sua própria atividade

Em dado momento deste filme, um personagem sussurra para o outro que as ficções são os melhores documentários. Estreando fora de competição no Festival de Cannes deste ano para uma plateia em sua maioria alheia a experiência de se "ver filmes" no Brasil, ‘Retratos Fantasmas’ é mesmo como um documentário introdutório das coisas que mediam esse processo. Kléber Mendonça Filho não esconde desde o primeiro minuto que ao invés de apenas “contar” algo, ele está, à olhos nus, criando uma ficção sobre como sua compreensão de “fazer filmes” está atrelada a uma imagem do que era sua cidade natal no passado – algo que já não existe, que virou fantasma.


Diante do que está posto, um cineasta que fala sobre as casas, ruas e salas de cinema que o formaram, podemos chegar na doce constatação de que alguém realmente precisava fazer esse filme – com toda nostalgia, frustração e lamento que é lembrar das cidades ocupadas por espaços de exibição independentes de centros comerciais, um filme que encare com saudade e certa revolta essas “ruínas preferidas”.


Na primeira parte – “O Apartamento de Setúbal” –, ainda não estamos do lado de fora, mas no seu primeiro casulo de criações. Principalmente por ser um longo trecho aberta e profundamente ensimesmado, Kléber compartilha conosco algo que é praticamente canônico porque quase todo cineasta tem uma história assim de começar filmando na sua própria casa, de se ver espelhado pelo espaço que já ocupa. Neste mesmo ano, Steven Spielberg fez o mesmo com o fabulesco e radiante The Fabelmans, fazendo infância e adolescência serem intermediadas por seu impulso de resolver os próprios problemas com uma câmera que o esconde, que lhe dá poder, sempre apontada para o mundo. O cinema do Kléber, aliás, sempre foi assim, de olhar de si para o mundo. Por mais óbvio que seja, soa revelador quando surgem as imagens de O Som ao Redor (2012), os cupins de Aquarius (2016) e as repetições de seus curtas, constatando a pessoal e intransferível base documental de suas ficções.


Já na segunda parte, onde retoma-se a discussão dita central da experiência coletiva de cinema no Centro de Recife, a trama consegue se ampliar sem nunca perder os devaneios particulares de seu narrador – a sequência de leitura dos letreiros é um bom exemplo disso. Surpreende a investigação de arquivo que encontra certos personagens emblemáticos, do projecionista Alexandre Moura ao empreendedor Luiz Severiano Ribeiro, para traçar a existência de fantasmas que também desapareceram com os cinemas, assim como os lixos do cinema americano que eram catados e vendidos nos camelôs, como as multidões que saiam dos filmes e continuavam a experimentar o trajeto coletivo das ruas.


Apesar da narração ser tão restrita, cíclica e por certas vezes inevitavelmente enfadonha, ainda assim está falando de tudo. Fazendo lógicas ressalvas de classe, gênero e raça particulares ao diretor e a cada um de nós com variadas condições para “seguir o sonho”, é um filme que nos leva para todos os centros urbanos do Brasil, para todas as salas de cinema do mundo. Na primeira edição da revista da MUBI lançada ano passado, há uma matéria sobre históricos cinemas da Tailândia que fechavam para “dar caminho” a edifícios, uma destruição que começou “há mais de duas décadas”. Os fantasmas não estão só em Recife e, definitivamente, não assombram só o Kleber. A terceira parte do filme, porém, amarra esse lamento com uma fantasia prenunciada: os cinemas desapareceram ou será se não estão apenas invisíveis?

 

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