Presença das Artes Cênicas Contemporâneas no Cinema
Crítica sobre a presença das artes cênicas no cinema, mostrando como ela amplia o discurso cinematográfico

As relações entre o cinema e as artes cênicas contemporâneas (destacando aqui o teatro, a dança e a performance) podem ser úteis para pensarmos como essas linguagens de representação travam diálogos, ou mesmo, embates sobre questões como a experimentação no trato com a mimesis. Ao longo dos séculos XX e XXI, as mudanças advindas das vanguardas artísticas, de áreas que investigam o humano, como a psicanálise e a antropologia, e da própria sociedade, nos legaram a indagação sobre o “como” e “o quê” representar.
Luiz Fernando Ramos tem estudado o assunto no âmbito das artes cênicas ao analisar movimentos de artistas modernos e contemporâneos, que levaram-no a cunhar o termo de mimesis performativa, para tentar dar conta de criações que exploram ao máximo a desfiguração do paradigma aristotélico e realista de representação.
Um primeiro exemplo que me ocorre é o documentário Pina, dirigido por Wim Wenders, sobre a obra da coreógrafa Pina Bausch e realizado no período em que sua companhia de dança fazia o luto pela sua morte. A abstração do gesto da dança-teatro, de trechos de suas coreografias, revela em muitos momentos o gestus (termo de Brecht) social. Relações de gênero em que a mulher é usada como objeto de disputa, estados de espírito que evocam alegria ou até um enigmático lançar-se ao chão são postos com leveza e ludicidade. Wenders desloca muitas das cenas que antes habitavam os palcos para espaços da cidade e da natureza, como intervenções site-specific. Em Fale com ela, de Pedro Almodóvar, cenas de Café Muller e Mazurca Fogo são mostradas como vistas por personagens do filme, reforçando uma narrativa melodramática com a poesia do gesto dançado, sendo que, tanto no filme quanto nas cenas de dança mostradas nele, as relações entre homens e mulheres parecem ser o alvo.
Moscou e Inferninho são dois casos que nos trazem narrativas brasileiras que dão notícias do envolvimento de grupos de teatro com cineastas. O primeiro é um documentário de Eduardo Coutinho, que entrelaça a ficção e a realidade dos depoimentos dos atores do Grupo Galpão, sediado em Belo Horizonte, sendo dirigidos por Enrique Diaz na montagem da peça As três irmãs, de Anton Tcheckhov. O espaço do teatro em que ensaiam é belamente explorado e o próprio ensaio e seus jogos se tornam parte do documentário, trazendo aqui uma metalinguagem, especialmente cara ao teatro.
Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, parece transitar na busca por uma teatralidade inerente ao próprio cinema, mas dando-lhe um ar surreal. Os personagens principais Deusimar (Yuri Yamamoto) e Jarbas (Démick Lopes) convivem num bar que tem como frequentadores super-heróis americanos parodiados e um coelho cor de rosa, garçom-poeta-filósofo (Rafael Martins), numa história de resistência pela sobrevivência do bar e do amor entre Deusimar e Jarbas. Todos os atores que citamos são também artistas de teatro em Fortaleza, muitos do Grupo Bagaceira.
Drive my car, de Ryusuke Hamaguchi, mostra a solidão e o encontro de um diretor de teatro, Yusuke (Hidetoshi Nishijima) com sua motorista, Misaki (Toko Miura). Os dois criam um relacionamento que evolui da desconfiança inicial até uma profunda amizade. O filme tem um tom mais austero, ao acompanhar o luto de Yusuke e suas formas de superação. Além da amizade com Misaki, ele encena Tio Vânia, peça de Tcheckhov, na cidade de Hiroshima, em um processo de muita disciplina com atores profissionais. Mas sobressai-se um momento de poesia na peça em que existe um diálogo entre o monólogo do próprio diretor, ali como ator, e os gestos em linguagem de sinais de uma atriz muda. Num silêncio que diz mais que mil palavras.
Crimes do futuro, de David Cronenberg, traz um futuro distópico em que uma sociedade de humanos em mutação corpórea tem como linha de fuga a mortalidade, associada ao humanos, os que ainda seriam “normais”. A performance, deslocada da arte e da contestação, aparece retratada como ritual de celebração do ideário mutante vigente, o que também pode ser visto como uma crítica a performers, como Stelarc e Orlan, que lidaram com modificações corporais em alguns de seus trabalhos. Recentemente, Diana Taylor forjou o termo ”MOMAficação”, para falar de uma certa “gourmetização” da performance, à sua exploração como evento midiático, referindo-se à exposição The artist is present de Marina Abramovic no Museum of Modern Art (Moma), em Nova Iorque.
O que me parece em disputa no conceito de Taylor é uma valorização do caráter político e não-institucional do tipo de cena que busquei tratar aqui com a análise da presença do discurso das artes cênicas no cinema. No cinema, elas geralmente aparecem como um poesia que liberta a narrativa da mimesis realista e a faz dançar.
Manoel Moacir Rocha Farias Jr. é professor de artes cênicas da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). É mestre e doutor em Artes (Teatro) pela Universidade de São Paulo (USP). Escritor e artista da performance, pesquisa cenas contemporâneas e suas formas de transmissão.
Filmes:
Pina – Documentário. 2011.
Fale com ela – Comédia, drama, romance. 2002.
Moscou – Documentário. 2009.
Inferninho – Comédia dramática. 2019.
Drive my car – Drama, romance. 2022.
Crimes do futuro – Drama, terror, ficção científica. 2022.
Espetáculos:
Café Müller – Dança-teatro. 1978.
Mazurca Fogo - Dança-teatro. 1998.
Exposição:
The artist is present – Performances, 2010.
Peças:
As três irmãs – Drama, 1900.
Tio Vânia – Drama, 1896.
Bibliografia:
RAMOS, Luiz Fernando. Mimesis performativa: a margem da invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015.
TAYLOR, Diana. Performance. São Paulo: Perspectiva, 2023.
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