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Foto do escritorArthur Gadelha

Na esteira de Barbie, ‘Pobres Criaturas’ encaixa Yorgos Lanthimos na transgressão de Hollywood

★★★☆☆ Novo filme do diretor grego, outrora uma figura alienígena, apazigua seu furor com elenco gracioso da América



Ao mesmo tempo em que é ridiculamente fácil identificar este como um trabalho de Yorgos Lanthimos, também são imediatas as comparações com outros de seus olhares perturbados sobre este cartunesco mundo real tão violento que precisa ser olhado pelo lado de dentro, pelos vidros nunca desembaçados, pelos minúsculos vãos das fechaduras. Por subverterem certas condições do que pode existir em sociedade, seus personagens nutrem um fascínio pelo conceito aterrador da prisão que está diretamente vinculado com a manutenção da masculinidade como uma entidade onipresente em tudo que define a estrutura social.

 

Acho importante olhar para sua obra nessa amplitude porque “Poor Things” – no título original – chega num pedaço curioso de sua trajetória como mensageiro desta mesma mensagem, que é essencialmente de uma inversão moral: sua personagem feminina, criada e guiada sob a monstruosidade de homens distintos, pertence ao lado de fora. Havia algo disso na caricatura de A Favorita (2018), que certamente abriu vários caminhos agora tão explícitos, mas é este o capítulo que o põe nos trilhos de uma Hollywood aberta aos discursos inerentes à estética – afinal, por que não a história de uma mulher que precisa vestir-se de monstro para olhar o mundo sem a violência patriarcal?

 

Diferente do que Margot Robbie precisou fazer de forma adocicada para dar materialidade à descoberta de uma boneca sobre um mundo que não lhe pertence, Emma Stone tem aqui uma provocação ampla ao se impor numa realidade que não têm – e não pode ter – proprietários. Quando Bella responde que “é seu próprio meio de produção”, percebemos que esta é, na verdade, a resposta de um homem que a imagina. No limite do que é possível captar dessa ironia, é fascinante a importância que tem o personagem do Mark Ruffalo, e como ele escracha isso, ao ser usado como uma espécie de “autocrítica” do próprio autor que por tanto tempo desenhou a bobagem de tudo aquilo que é masculino na gramática do mundo.

 

Barbie e Bella, afinal, compartilham da mesma inocência ao tratar com esse mundo real que Yorgos tanto escondeu de seus próprios homens. “Nós não temos genitália”, informa a boneca de Greta Gerwig para um grupo de homens que os observa ao que Ken reage envergonhado logo em seguida: “Eu tenho todos os genitais”. É certo que esses filmes, tão abismais, falam da mesma coisa. Não que sejam consequenciais, mas a existência de ‘Pobres Criaturas’ desta forma tão lúcida e narrativamente polida para dar sua visão de um “mundo transgredido” por morais que não foram fundadas como tais, vai de encontro com este momento em que essas histórias são abraçadas por Hollywood exatamente porque são digestíveis, mesmo que neste caso tão no limite da fronteira.

 


Claro que há um grande porém na consideração deste como um filme “meramente palatável”, mas Yorgos condensa aqui sua estética desafiadora para ocupar um lugar de irreverência cultivado por essa indústria para não ser julgada de forma tão “sisuda” – lugar que, por exemplo, faz autores como Wes Anderson e Spike Jonze serem reverenciados. Nos últimos anos, mesmo já trabalhando com elenco norte-americano – especialmente com A Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) – ainda pairava sua criação uma aspereza imensa, a sensação de que seus universos eram espinhosos e nada bem-vindos para nós espectadores, o que era um contrassenso genial de atração. Neste agora, ele substitui a dureza por um humor que sempre esteve engasgado ou até bastante soterrado sob a gravidade de sua violência.

 

Emma Stone entende a seriedade desta missão e nos cativa aos poucos com o avanço de Bella, partindo da pureza de sua irracionalidade no rumo de certa conformidade e estacionando numa subversão tão doce quanto a de Barbie. Com seu já famoso olhar agudo e uma expressão corporal que fala por si, imagino que seja difícil alguém não mergulhar na sua tomada de consciência. Willem Dafoe oferece quase um contraponto do instinto de sua criatura ao marcar uma presença sempre encantadora, mesmo representando tanta crueldade.

 

No que deve ser sua primeira estética deliciosa, com lentes invasivas, cenários e figurinos extasiantes, trilha carregada de uma angústia reciclada, além da montagem comicamente capitular, “Pobres Criaturas” é um filme radiante e feliz, veja só. Poderia ser apenas uma grande ironia como um filme do Michael Haneke cujo título é “Happy Ending”, mas Yorgos prefere desviar dos disfarces dos quais é cumplice para superar a autorreferência de seus mundos enclausurados e condenados à fatalidade. Vamos ver quem desiste primeiro – ele ou Hollywood.

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