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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Com Kika Sena, "Paloma" renova o destino de Marcelo Gomes no sertão

CRÍTICA Vencedor de Melhor Filme e Melhor Atriz no Festival do Rio, longa gravado no Crato chega aos cinemas brasileiros 10 de novembro

O pernambucano Marcelo Gomes tem uma carreira que, mesmo com ficções e documentários, no presente e no passado, repartido em ações e memórias, parece colidir em sensações muito próximas. De certo modo, suas histórias tomam para si o objetivo de destrinchar os desafios encontrados no trajeto de um desejo pessoal que é sempre, e sinceramente, honesto, afetuoso, libertário, apesar de tudo o que o impede. Não à toa parte dos seus filmes caminham pelo sertão nordestino em busca dos manifestos de felicidade e dos rastros de transformação: dos mais explícitos Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2014) e Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019), ao mais estranho Joaquim (2019). 20 anos depois do seu primeiro roteiro para cinema, Gomes apresenta Paloma, um filme tão unificador desses sentimentos, ao mesmo tempo que esbanja um carinho novo em sua forma mais simples: uma história de amor.


Na trama baseada em acontecimentos reais, Paloma é uma mulher trans que sonha em se casar na igreja - a instituição católica, claro, não concebe essa possibilidade. A forma como a personagem encara esse limite já é uma dimensão que refresca as jornadas registradas com apreço por Gomes. Assim como, no documentário anterior, os que costuram todos os dias do ano juntando dinheiro para celebrar a curta data de carnaval, Paloma está decidida em subverter o preconceito entranhado na constituição da fé - "eu também sou obra de deus, padre", comenta quando ele tenta encerrar seu sonho.


Nessa peregrinação, Kika Sena surpreende por nunca deixar que essa esperança desapareça dos seus olhos, da sua fala, mantendo a razão do seu destino muito evidente para todos nós. A sutileza da sua performance, pautada nos silêncios e nos sorrisos sonhadores, também entrega a filmografia de Gomes um carinho inédito - isso porque Paloma se constrói de forma tão concentrada, que sua confiança vai soando ilhada diante dos que estão ao redor; o marido fugidio, as amigas imersas em seus próprios problemas, o trabalho que a trata como exceção. Seu amor ganha dimensão de forma isolada, o que em dados momentos também expõe a pressa sem desenvoltura de alguns pontos de virada no roteiro escrito à três mãos, como nas tragédias do bar ou a do abandono.


Outras presenças também ganham destaque, como a personagem emocionante de Samya De Lavor, os misteriosos de Zé Maria e Ridson Reis e as memoráveis de Suzy Lopes e Patricia Dawson, mas Paloma - como podemos presumir pelo título - é daqueles filmes "de personagem". Como Céu de Suely (2006), de Karim Ainouz, um filme que precisa da centralização do conflito pra dar a potência do que se atravessa - o que passar disso, para o bem e para o mal, sobra. Kika é esse epicentro que abertamente dá vazão às expectativas e tensões, ao mesmo tempo em que os põe à prova dos que vigiam.


Pierre de Kerchove, fotógrafo da claustrofobia às claras de Joaquim (2017), aqui enquadra os planos sem tensão ou mistério - como poderia ser, dado o sufoco dos que escanteiam Paloma. Numa das escolhas mais assertivas, a luz exalta sempre a visão alegre e determinada de sua protagonista, no calor de um sertão com poucas rotas. Diferente de histórias onde a fuga é iminente diante do desencontro, como o próprio Céu de Suely (2006) ou Fortaleza Hotel (2019), do mesmo roteirista, sempre fica claro para nós que Paloma reconhece aquele lugar como propriamente seu, palco do seu destino.


Injetando carinho e paixão, ao mesmo tempo em que encontra violência e suspense, Paloma é um filme bastante simples com aparência de raridade. No Cinema Brasileiro, pelo menos, parece peça única ao colidir uma história de amor com a crueldade do que a impede, dessa forma, em meio às paisagens do interior nordestino. Apesar de uma despedida ingrata sob o olhar atordoado de Kika, saímos da sala completamente contaminados por sua bravura.

 
 

Direção: Marcelo Gomes

Roteiro: Marcelo Gomes, Armando Praça e Gustavo Campos

Produção: João Vieira Jr. e Nara Aragão

Elenco: Kika Sena, Ridson Reis, Zé Maria, Suzy Lopes,

Ana Marinho, Samya de Lavor, Wescla Vasconcellos,

Patrícia Dawson, Nash Laila, Márcio Flecher,

Buda Lira, Anita de Souza Macedo

Direção de Fotografia: Pierre de Kerchove

Montagem: Rita M. Pestana

Direção de Arte: Marcos Pedroso


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