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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Pacarrete: comédia sobre um sonho cansado

CRÍTICA A história de uma paixão pelo balé que encantou Xangai, Gramado e o Ceará


"A esperança dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha pode se machucar A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista Tem que continuar"

Parece ser isso que Pacarrete quer dizer quando grita enfurecida pelas ruas de Russas, no interior do Ceará, que “o artista nunca deve deixar os palcos”. Claro, o contexto da canção famosa na voz de Elis Regina é bem mais violento. Lançada pouco depois à revogação do AI-5, a canção reverberava os anos de chumbo, onde a cultura em seu estado de denúncia conseguiu atravessar o período de censura explícita que vivia os anos 1970. O artista não se calou apesar da repressão e ficou lá, pelos cantos ou nos palcos, cantando, filmando, dançando, ou simplesmente gritando contra o silêncio, exatamente como Pacarrete o faz para defender sua existência durante maior parte de sua história na tela.


O longa de estreia do cineasta cearense Allan Deberton, ao mesmo tempo em que parece ter sido feito para o contexto atual de um governo repreensor da liberdade, aproveita-se para lançar um manifesto que mistura coragem à desesperança, pois parece gritar ao mundo que se fecha cada dia mais em torno do conservadorismo social que, como a própria diz, "não valoriza a arte". Na obra, Pacarrete é uma senhora que vive sozinha dentro de sua paixão pelo balé, embriagada pelas memórias de quando era jovem e importante. Mas, a diferença está aí, ela não grita contra um governo que quer calá-la, mas contra uma sociedade que não tem mais porque escutá-la, e sequer vê-la dançar. 

É curioso o que Allan faz desse eterno sentimento de frustração, pois vira humor ingênuo na pele de uma doce Marcélia Cartaxo que dualiza a brutalidade de um mandacaru à uma sensível persona que surge apenas quando se acanha em resposta ao amor ou ao medo. Pacarrete surpreende ao ser, a partir desse contexto, uma comédia desmascarada, abertamente interessada em arrancar os risos frouxos de uma plateia atenta à “loucura” da personagem pela empatia imediata e ao roteiro cravado de regionalismo nordestino em suas reações impacientes. Sua raiva faz rir, mas sua decepção faz chorar - e é aí que essa história nos pega pelo pescoço. 

  Abrindo como um simpático musical, o filme encontra rapidamente seu tom de humor porque Pacarrete começa a gritar muito cedo e as personagens dessa história vão surgindo como numa apresentação de teatro. Chiquinha, Maria e Miguel são como peças complementares ao histrionismo que vive no centro do palco, balanceando o contexto de realidade que insiste em se manter no filme antes de abandonar em seu desfecho catártico. Esse “mundo real” orbita Pacarrete para deixar claro que ela vive em um outro lugar, a ficar claro quando as relações sociais e afetivas coexistentes ao quinteto são negligenciadas pela bailarina, porque a ela basta o sonho - quer ele ele esteja na memória, quer exista apenas numa fita VHS. 

Quando essa estrutura já parece estar pendente ao cansaço, a obra surge com um outro filme após um evento dividir brutalmente o tom da narrativa. O mundo cai sobre a cabeça de Pacarrete, e a frustração encontra seu momento de maior medo. No momento em que as coisas despencam à nossa frente, já não há humor e surge a pessoa por debaixo, o corpo cansado de tanto sonhar. 


Tonto de tanto Voar, sou pássaro

Somente pena,

Apenas Canto,

Somente Ar.

Tenta como eu ser asa enquanto o tempo passa,

Tenta como eu...ser pássaro.

Petrúcio Maia/Capinam


Perto de seu desfecho, certos de que é nessa sensação de desesperança que a história vai nos abandonar, estamos envolvidos demais pelo drama para que a metamorfose a seguir possa ser prevista - é como a viagem de Deusimar em Inferninho, ou como a surpresa de Pedro no último plano de Greta. É o encontro com o sublime que a sequência consegue emular com uma precisão emocionante.

É em seus últimos segundos de projeção (esses que já nascem para a história), que volta um sorriso ingênuo. Allan e sua equipe de roteiristas são espertos ao saber, quase cirurgicamente, como fazer a esperança de liberdade vir de dentro da plateia que se vê lotando um cinema enquanto contempla o vazio e preenche o silêncio com aplausos - é como fazer parte do espetáculo. A obra acaba sem mistérios, cantando (ou dançando) a mensagem que abre esse texto. Para muito além da crueldade desse mundo real, Pacarrete nunca deixará os palcos e o show continua na corda bamba. 

Principalmente por reconhecer sua estrutura simples, a obra foi capaz de conquistar todos os públicos que enfrentou, seja em Xangai, onde fez sua premiére mundial, no sul do Brasil ao arrancar oito kikitos no Festival de Gramado, ou no encerramento do 29º Cine Ceará, onde o filme teve sua primeira exibição no Nordeste. Pacarrete é uma obra popular sobre liberdade da cultura, e isso nunca pareceu importar tanto quanto neste momento. 

Filme assistido no 29º Cine Ceará

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