"Na Vertical": Liturgia de desejos
CRÍTICA Longe da esperança, um road movie imóvel
Em Circuito Mubi
O cinema de Alain Guiraudie é sempre uma experiência desconcertante. Nada é óbvio, nem os rótulos que empregamos aos personagens e sequer os desvios e caminhos que seguem suas histórias. Não a toa, Na Vertical se parece muito com a improbabilidade narrativa de Um Estranho no Lago. É desafiador que Alain esteja interessado em criar suspenses íntimos com histórias tão sinceras quanto estranhas - estranho porque adiciona valor exclusivo aos impactos sexuais sem parecer fetichista, e os filmes se reforçam como mediador desses desejos. Aqui não é diferente.
Na trama, Léo vaga pelo interior da França quando se vê atravessado por um pastoreio de ovelhas gerenciado por pai e filha cuja comunicação denuncia ruídos quietos. Ao se deixar fazer parte dessa história, principalmente por um interesse sexual, Léo também está tentando escrever um roteiro de cinema? Não é mais surpresa que Alain precise de algo além de seus personagens para causar a verossimilhança do tom exaustivamente ameaçador.
Para além das constantes incitações dos possíveis conflitos (e parece que a ideia é jamais acertar), o filme precisa ser misterioso, exigindo que do lado de cá façamos teorias e sejamos surpresos pela brutalidade que vai se apresentando tão tímida também na imagem. Fotógrafa experiente nessa sobreposição de paisagem-personagem-mistério em plena luz do dia, como testemunhamos recentemente em Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), Spencer (2021), Atlantique (2019) e no próprio Um Estranho no Lago (2013), Claire Mathon eleva aqui o suspense do escuro e do silêncio quando precisam aparecer.
Enquanto no Lago se constrói uma relação mútua com o espaço (não somente por ser tema da história), neste a relação traduz um desnorteamento apesar das pessoas "saberem onde estão", parecido com o trabalho sufocante que Ari Wegner faz em Ataque dos Cães (2021), da Jane Campion. Em Na Vertical, o protagonista é um andarilho, e a imersão geográfica reivindica mais significados nas paisagens secas, escuras, pálidas e imensas.
Em certo ponto, porém, é estranho que tudo se torne mecânico. Parte pela expressão robusta de seus personagens e das situações que enfrentam - uma característica cúmplice da câmera de Alain que se aproveita dessa frieza (mesmo que o trabalho de entrega do elenco seja impressionante, destaque para Damien Bonnard, que transpira toda a angústia e liberdade implícita). Incluindo a metáfora de feitura de histórias, o filme tem essa cara super ensaiada, a impressão de um roteiro respeitado liturgicamente. Essa característica de aparência positiva, no entanto, é brevemente enfraquecida pelos encaixes entre os pontos de virada da história. O que leva o personagem a encarar essa trajetória é um jogo de insinuações que nem sempre são atrativas – mas é também por aí que o filme torna a crescer.
A partir de certo momento, os conflitos são os alicerces da própria verossimilhança. Não há uma ideia sequer que sirva somente de preenchimento; nos filmes de Alain tudo volta. Seja o sem-teto que o encarou, seja o garoto que parou no meio da rua para lhe oferecer uma audição. A história dos lobos, por exemplo, é o gancho responsável por duas das melhores cenas de sua carreira. Por essa exatidão, é interessante que o tema central deste e também de sua filmografia em geral seja não a sexualidade, mas o desejo.
Explicando seu título nos últimos segundos, Na Vertical é uma obra simples e perturbadora, desencaixando as próprias regras e encarando as emoções com um impacto sexual até charmoso. Há uma sedução no modo como Alain enxerga essa história, e só isso seria capaz de desconcertar quem espera que atenda alguma expectativa. Uma experiência que lembra o espírito de O Ornitólogo, do João Pedro Rodrigues, quanto a expressão imediata do desejo, a exploração do outro, e a jornada de fuga. Alain Guiraudie, porém, descobre muito mais coisas.
Direção e Roteiro: Alain Guiraudie
Produção: Sylvie Pialat e Benoît Quainon
Montagem: Jean-Christophe Hym
Elenco: Damien Bonnard, India Hair e Raphaël Thiéry
País de Origem: França
Ano de Lançamento: 2017
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