"Monrovia, Indiana" olha uma cidade acontecer
Sociedade, cultura e poder: configurações do interior dos EUA
O modo muito peculiar como Frederick Wiseman observa o tempo coloca-o numa posição de invenção assustadora sobre a realidade sem a menor intenção de "superá-la". Talvez como Caetano que disse ter visto "o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino" para dizer que o viu crescer, um olhar distante e pouquíssimo ruidoso. É na intenção de observar a naturalidade da existência social que seu cinema se esquiva de entrevistas, recortes temporais, sobreposições ou costuras análogas para criar narrativas tão sutis quanto cirúrgicas sobre as instituições públicas e suas influências. Mais que documentários, seus filmes são documentos.
Em Monrovia, Indiana, Wiseman olha para uma pequena cidade no interior de Indiana, nos EUA, para compreender como as demandas da população estão pratica e emocionalmente ligadas ao gerenciamento público sobre ela. Então ele "invade" espaços públicos e privados para identificar os traços da vida nessa cidade rural, lançando olhar sobre seus valores ético e morais de maneira tímida. Ao acompanhar, por exemplo, uma conversa sobre caça de cervos numa antiga loja de armas e, em seguida, uma propaganda em praça pública sobre quantos proprietários não mataram ninguém ao longo do ano, expõe a naturalidade da ideologia armamentista de um condado que em 2020 deu quase 80% dos seus votos para Donald Trump.
Para dar corpo à sociedade, Frederic enxerga algumas configurações demonstradas, como uma importante cerimônia maçom, uma exposição de carros raros, um leilão de máquinas agrícolas, um casamento emocionante, um coral de escola, movimentação de bares, músicos de rua... Para além da curiosidade desses momentos, o que mais impressiona mesmo é seu olhar para a interpretação da cidade como ela mesma uma instituição. No que parece ser um comitê municipal, são discutidas por longos minutos as iniciativas, consequências e demandas que uma eventual expansão de Monrovia pode acarretar. Empresários locais querem trazer pessoas de outras cidades para morarem mais próximas ao emprego. Apesar do aumento imediato de receita fiscal da população, será que a cidade consegue aportá-los? Há hidrantes suficientes para apagar eventuais incêndios que a aglomeração fará ser mais suscetível?
É a partir dessas contradições, dúvidas e movimentos que Wiseman se posta por detrás de uma câmera para trazer essas discussões como métodos de reflexão sobre a influência desses órgãos sobre a sociedade identificando, principalmente, em que nível esses dois fatores são congruentes ou divergentes. Em que ponto o debate público é, de fato, público? A partir disso, seria um equívoco imenso concluir a Wiseman uma percepção passiva da realidade, pois seu trabalho de montagem com Valérie Pico extrai uma narrativa bastante explícita. Ao filmar uma "cidade que acontece" à olho nu, Wiseman esconde sua direção peculiar como um poema sem rimas, por exemplo, esconde sua beleza.
★★★★
Direção: Frederick Wiseman
País: EUA
Ano: 2018
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