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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Na paródia amorosa, ‘Matrix Resurrections’ é uma homenagem sem carinho

CRÍTICA De volta ao universo de Matrix 18 anos depois de um desfecho intrigante e amargo, Lana Wachowski põe sua mitologia à prova

KEANU REEVES as Neo/ Thomas Anderson and CARRIE-ANNE MOSS as Trinity in Warner Bros. Pictures, Village Roadshow Pictures and Venus Castina Productions’ “THE MATRIX RESURRECTIONS,” a Warner Bros. Pictures release.


À sua maneira, Matrix talvez seja a franquia mais franca desse século, mesmo sendo ela imperfeita, às vezes boba, truncada, tão repetida, entranhando-se na cultura popular de modo orgânico em discussões que brotavam ao fim dos anos 1990. Nesse universo cibernético quase underground de códigos, robôs e hackers, as Irmãs Wachowski injetaram humanidade para contar uma história de fé e amor. Nós neste século XXI, banhados de condições virtuais, podemos olhar de longe e enxergar uma engenhosa previsão do mundo: nossas vidas, afinal, ali na origem da automação e da informática popular, já estavam destinadas a serem cada vez mais programadas.


Ou seja, nada mais justo que essa franquia seja uma das fisgadas à contemporaneidade diante dessa ideia tão atraente quanto perigosa de pensar um revival, uma ressureição, seja para expandir seu universo pensando no futuro, seja apenas para chacoalhar os adoradores que ainda restam. Assim como ocorreu a Star Wars, Homem-Aranha e Harry Potter, Matrix Resurrections tem esse sabor explícito de uma nostalgia que vem em bora hora e se basta. O que aconteceu a Neo? Seu sacrifício e o de Trinity valeu de algo? São muitas as perguntas largadas lá atrás, e o novo roteiro da Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon tem a curiosa missão de dar conta de todas. Então, o que se tornou Matrix?


Quando lançado em 1999, o enredo esbanjava uma autoconsciência de invejável constatação de que essa era, inevitavelmente, uma história já contada: O Escolhido, O Oráculo, O Mestre, O Destino. Mas as regras dessa jornada do herói eram tão criativas e honestas que acessavam, do lado de cá, um tom sublime - ao fim do século XX, essa guerra literal e filosófica entre homem e máquina não poderia soar mais oportuna. Em Matrix Reloaded (2003), a saga vai ficando entediante à medida em que se iguala as outras no contexto da Resistência, vai virando Star Wars em estética também, visual e sonora, e a revolução vai desaparecendo. Matrix Revolutions (2003), apesar de mal resolvido no impulso grosseiro de ser épico, dúvidas deliciosas são deixadas em aberto: Será mesmo que Neo teve alguma escolha nessa história? Nós temos?



De volta a matrix neste quarto episódio, o prólogo sóbrio, mas humorado e bastante autorreferencial, parece mais irônico do que o previsto, principalmente pela insistência da emoção precisar ser guiada tão descaradamente ao passado (com direito até à projeção de imagens na parede). Negociando a produção de um novo jogo com Thomas, o personagem do Jonathan Groff reflete que eles estão "contando as mesmas histórias que sempre contaram, apenas usando diferentes nomes e diferentes rostos", e que precisam fazer isso de novo por exigência da... Warner Brothers. Essa conversa é dada como introdutória à nova realidade de Neo, mais uma vez embriagado pela programação, ao mesmo tempo em que o filme se aproveita da autoparódia para sustentar a ficção e responder: por que mesmo estamos de volta? E diferente do que se poderia imaginar, não, não estamos aqui pelas respostas.


Quando essa ilusão desaba, Neo acorda outra vez. Ficou fora por 60 anos. É um renascimento bonito, principalmente nessa trama que se dedica tão explicitamente à lembrança do mundo que deixou de existir tanto nas telas quanto fora dela. Está tudo intacto: o campo de corpos, as máquinas, a resistência e as naves, tudo como Lana e Lilly deixaram 18 anos atrás. Visualmente, o filme traz algumas surpresas, como a exploração do "bullet-time" e a corporificação no mundo real de personagens digitais. Por outro lado, as sequências de ação engatam num Modus Operandi proposital e sem surpresas, como se o filme fosse mesmo o jogo de Thomas, emulando os gestos, poderes e movimentos por comando.


Mesmo que em seguida venha uma enxurrada de explicações sobre o que lhes ocorreu, como estão vivos, para onde foi Zion, etc, a única coisa que realmente importa aqui ao longo de quase 2h30m, é a paixão abandonada entre Neo e Trinity. Essa decisão, tão charmosa quanto cega, é o que o quarto capítulo de Matrix realmente tem para oferecer. Como Steve Rogers dançando com Peggy Carter ou Kevin Garvey acreditando em Nora Durst tantos anos depois sem saber se era tarde demais. Parece justo, não, uma história de amor?


O problema, porém, também está aí. Os reencontros, revelações e pontos de virada são conduzidos sem qualquer cerimônia, como a súbita retomada de consciência da Trinity que, em seguida, descobre novos poderes sem um terço dramático de quando Neo impediu aquelas balas e aprendeu a voar. À medida em que essa conexão entre eles vai se fragilizando sem ajuda até mesmo da montagem, ora tão dedicada a experiência de voltar ao passado, a emoção vai se dissipando da tela e sobrevivendo aqui fora na imaginação.


Yahya Abdul-Mateen II como Morpheus

Essa nova equação pode deixar dessa vez perguntas menos deliciosas: será mesmo que essa história precisava existir? Eu responderia que sim, mas sem sorriso tão sincero no rosto. A cena em seguida a que Trinity desperta e tenta se aproximar de Neo em meio ao caos é uma das certezas que mantém a beleza dessa jornada sem fim: as mãos estiradas através dos donos do sistema, a guerra explícita contra um amor que não pode acontecer porque juntos formam a falha mais irreparável na matrix.


Direta e indiretamente, a insistência dessa "história de amor" revigora a metalinguagem contraditória de um filme que se faz obrigado a existir, especialmente por ele não ser o que seus fãs ou a "empresa-mãe" esperavam. Matrix 4 vai se moldando como ele mesmo uma falha na matrix dos blockbusters. Corajoso? Sim, sem dúvidas, e também um tanto quanto frustrante, um sarcasmo "autoral" que faz mais sentido aceitar de bom grado nesse ano que trouxe até homens-aranhas antigos para justificar o "amor pelo cinema".



Apesar da atuação de Keanu Reeves não ajudar tanto, como na realidade nunca ajudou, Carrie-Anne Moss faz o trabalho pelos dois na epifania de uma nova camada de possibilidades para essa matrix "moderna", apesar de propositalmente limitada. Yahya Abdul-Mateen II, outro destaque no elenco, também contribui nessa troca de tons ao emular um Morpheus carismático que, pela conduta duvidosa da obra, precisa também ser uma paródia do que aquele de Laurence Fishburne representou no fronte da revolução.


Nesse curso, trazendo de volta até mesmo Smith para uma missão passageira, a estrutura desencadeada da trama vai soando mecânica, às vezes superficial, como se escrita por um fã emocionado por citações e referências óbvias. Sem parecer uma história que continua ou que propriamente atualiza seu desfecho de 2003, Matrix Resurrections é como um spin-off, revelação dada aqui pelo próprio Merovingian. Tem cara e ritmo de uma homenagem caprichada na proposta afetiva, mas feita sem carinho ou compromisso, na busca por uma composição que atenda até à própria roupa "genérica" de seu universo. É como se Matrix, nesse ponto do seu legado, só tivesse à oferecer a piada da repetição, uma programação em looping, assim como os vários resets daquele mundo falso e injusto - mas se também é um filme divertido, acaba valendo a pena que ele seja apenas uma brincadeira muito cara.

 
 

Direção: Lana Wachowski

Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon

Fotografia: Daniele Massaccesi e John Toll

Montagem: Joseph Jett Sally

Música: Johnny Klimek e Tom Tykwer

Direção de Arte: Hugh Bateup e Peter Walpole





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