Honrando o legado, novo “Jogos Vorazes” tem consciência da sua antipatia
★★★☆☆ | Também baseado em um livro da autora Suzanne Collins, "A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes" surpreende pela dispersão entre conflitos
Na retomada nostálgica das franquias que marcaram a experiência de massa neste século, novo capítulo de Jogos Vorazes também resolve olhar o passado. Assim como aconteceu com Harry Potter, Star Wars e Matrix, uma trama que resolve expandir o universo construindo novas camadas do antagonista. É uma decisão esperta já que no lugar de ameaçar o protagonismo que fez dessas histórias sucessos absolutos, o "novo" conflito é imaginado para fortalecê-lo.
Ao centro deste "novo" capítulo está Coriolanus Snow – futuro Presidente Snow –, até então um cidadão de família pobre que mora na Capital, longe da miséria enclausurada pelas forças militares nos distritos “revoltosos”. Então ele já surge com essa contradição de classe e ganância, cuja busca pelas respostas de sua devoção vai inevitavelmente afundá-lo numa obsessão pelo poder.
No contraponto da frieza ameaçadora que Donald Sutherland já havia entregado ao personagem na franquia original, Tom Blyth constrói uma instabilidade atraente na forma como ele, disfarçadamente, coloca-se ao centro de tudo. Mesmo que demonstre piedade, paixão e certa “humanidade”, é tudo medido para que esteja muito próximo à explosão. Não é algo impressionante, mas pelo menos não é mimético e encara uma linha tênue de progressão e discrença.
Rachel Zegler, com sua constante firmeza e pontuais momentos musicais, oferece ao filme uma ótica inédita na saga, especialmente pela artimanha que a personagem tem para conviver com a manipulação, mesmo que sua presença tenha sempre uma construção formulada e sem desvios, sendo subitamente escanteada no terceiro ato. Hunter Schafer mistura preocupação com inocência numa personagem bem importante para compreendermos a mutação do Snow – principalmente em breves segundos mais perto do desfecho –, o que pode nos levar a percepção de que ela poderia aparecer muito mais e influenciar diretamente o rumo emocional do irmão.
Abordando a caricatura que os moradores da Capital naturalmente já são com figurino, maquiagem, penteado e costumes, muito do que aparece aqui causa uma impressão limitada, como se fosse uma mera “imitação” da forma como esse universo pomposo foi estabelecido há mais de 10 anos. No entanto, há um elemento que contorna essa sensação por completo: Viola Davis, na pele da Dra. Volumnia Gaul, sempre faz de sua aparição um acontecimento autêntico – a descida nas escadas da universidade quando interroga Snow sobre a razão dos Jogos Vorazes é um bom exemplo do quão a sério ela conseguiu levar sua personagem.
Apesar de todas as aparências simuladas para não assustar ninguém que esteja acostumado com a estética e a própria reflexão que os filmes estabeleceram sobre violência, mídia e sociedade, o que faz deste filme não ser uma mera extensão forçada de sua origem é a estrutura da narração. É contraditório, porque o que o diferencia é uma escolha bastante anticlimática e potencialmente frustrante – a divisão literal em três capítulos aceita a falta de surpresas e renuncia à gravidade dos acontecimentos fatais que se desenrolam, sem que invista em grandes arcos interligados. Este é um filme bastante morno, surpreendentemente, apesar do seu miolo ser uma edição do próprio Jogos Vorazes.
Ao mesmo tempo que isso dá a obra uma artificialidade enorme, levando seu espectador por uma jornada de punição sequenciada ao protagonista, é também o que desprende o heroísmo e a revolução de seu ponto final. Lucy Gray pode até soar como uma “Nova Katniss” pela atenção que recebe ao se portar com irreverência nos jogos, mas sua existência está pautada por um desfecho ensosso, sempre direcionada ao norte do Snow. Sendo um filme seco e levemente antipático, consegue não ser envolvente enquanto se distancia do tédio. Situação que o filme sabe lidar bem.
Na balança de comodidade e admiração, é como se Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (2023) fosse como o Matrix Resurrections (2021): fora do fandom, um filme para se esquecer, como tantos outros spin-offs que operam numa voltagem baixa para que seu barulho não desloque ninguém. O filme, porém, consegue alimentar o próprio cânone sem ser de forma meramente descartável – como Han Solo (2018), por exemplo –, e tudo isso sem fazer qualquer alarde. Talvez isso não combine tanto com a essência da saga, o que acaba deixando a pergunta aberta e ainda mais aquecida: qual o propósito dos Jogos Vorazes?
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