Arthur Gadelha
‘Entre Mulheres’ encontra na imobilidade da imagem um impulso de revolta
crítica Dirigido por Sarah Polley, esse é o único filme com direção feminina a concorrer ao Oscar de Melhor Filme
Um espectador alheio ao contexto original certamente irá mergulhar nessa história bastante confuso com que situação está de fato acontecendo, onde e quando. A trama é inspirada por acontecimentos reais que aconteceram na Bolívia quando mulheres de uma colônia descobriram que homens a dopavam para cometer agressões sexuais que adiante seriam justificadas como punição divina.
Surpreende que a diretora Sarah Polley já comece o filme nos colocando imediatamente dentro de uma discussão sobre as consequências, apresentando pedaços do subtexto de ordem e gravidade dos acontecimentos ao longo da projeção. Mas a principal surpresa para a plateia deve vir mesmo logo no início, quando um carro passa pela rua de terra anunciando o ano de 2010. Apesar de toda a aparência antiquada, a somar-se a própria brutalidade religiosa, esta é uma história contemporânea.
Aproveitando que não vemos a escalada entre o momento da descoberta dos crimes e a reunião para deliberar uma resposta entre perdoar, lutar ou partir, o filme se faz depender de seu elenco e dos diálogos para construir a tensão e as dúvidas em torno do poder que aquelas mulheres tem, mesmo tão reprimidas naquele esquema cruel de sociedade. Elas não podem estudar ou ler e nem saber onde estão, tudo em nome da permanência das regras de Deus.
Quando estão reunidas no alto de um celeiro para definir uma atitude a ser tomada no amanhecer do dia, lembro das imensas horas de Satantango (1994), de Béla Tar e Ágnes Hranitzky, principalmente pela forma como essa espera invadida de decepção e angústia está também na imagem. Se no húngaro é um preto e branco geladíssimo, aqui as cores ainda existem no limite da saturação apenas para nos lembrar que ainda há alguma crença no futuro, mesmo que aquele ambiente seja tão apático e sem vida. Há uma força especial, e bastante discreta, quando a câmera da Sarah sobrevoa aqueles campos imensos pintados de um verde quase sépia.
É perceptível o quanto esse projeto é pequeno e modesto porque mesmo trazendo um leque de atrizes para protagonizar essa longa conversa, as deixa quase que o tempo todo isoladas num mesmo ambiente, encenação que nos lembra uma apresentação teatral - o que seria, se assim fosse, uma bela adaptação porque também surpreende que a montagem e a trilha sonora não sejam rígidas. Talvez pela presença quase fantasmagórica de Rooney Mara e pelas intervenções ingênuas das crianças, os movimentos aqui são sutis e observam toda a conversa com cuidado, distante do tédio ou do esgotamento.
Diante de uma imagem sem cor e uma conversa sem fim, de viradas de rumo a cada novo pequeno acontecimento ou ruptura - e especialmente pelo uso pontual de narrações do futuro -, também fica soando a impressão de que essas cenas acontecem em outro plano de realidade, como se também fosse uma imaginação do passado ao ser recontado por fragmentos de memória. Isso tanto dá ao filme um caráter forte de estética quanto o entrega um rumo pré-definido, planificado de ritmo, ferramentas de roteiro e condução, lutando contra as expectativas de que alguma nova camada interfira. A personagem de Frances McDormand, sisuda e impassível, é trazida como um ponto de inflexão que não dura muito. Os homens incriminados da colônia, claro, não aparecem, uma decisão narrativa bem interessante que potencializa a urgência de decisão.
Optando por ser um filme sem epifanias e esquivando-se de tornar gráfica essa revolta ao preço dela ser quase que totalmente intelectual, Entre Mulheres é um bonito estudo de personagens que entende a ordem coletiva e seus impasses - sendo logo esta comunidade a ser olhada, tão algemada ao domínio masculino gerido pelo Deus que pode puni-las pela recusa do perdão, mas que, diante de tamanha violência sobre seus corpos e almas, não fez nada.
Direção: Sarah Polley
Roteiro: Sarah Polley e Miriam Toews
Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner e Frances McDormand
Direção de Fotografia: Luc Montpellier
Montagem: Christopher Donaldson e Roslyn Kalloo
Trilha Sonora: Hildur Guðnadóttir
País: EUA
Ano: 2022
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