Diário de Bordo: Mostra Retroexpectativa Dragão 2017
Diante da maturidade da mostra "Retrospectiva 2016 / Expectativa 2017", não parece que ela só está na 3ª edição, e, felizmente, não foi surpresa descobrir que a curadoria reflita a diversidade de anos passados. De 12 à 25 de janeiro de 2017, a mostra do Cinema do Dragão do Mar - Fundação Joaquim Nabuco exibirá de clássicos a filmes ainda não lançados em circuito brasileiro! E, como sempre, é muito bom ter esse banho para abrir o ano transpirante. Essa postagem estará se atualizando dia a dia da Mostra com minhas primeiras impressões sobre os filmes assistidos.
QUINTA-FEIRA | 12.01
A Vida Após a Vida | ★ ★
de Zhang Hanyi (China, 2016)
Um filme estranhamente apático, embora encontre pano em sua fantasia mascarada de realidade. Os ambientes e a transição dos personagens se fazem enxergar como um fluxo de pensamento e devaneio – principalmente pela fotografia sempre opaca e seca. Em sua trama de profundidade duvidosa, um filme que lhe resta a estética e a vontade de ser místico.
SEXTA-FEIRA | 13.01
Para Minha Amada Morta | ★ ★ ★ ★
de Aly Muritiba (Brasil - PR, 2015)
Tornando-se um dos recentes destaques nacionais, Aly Muritiba reacende o cinema paranaense com uma trama que oscila entre elementos de suspense e triller (com pontas do sub psicológico) e monta uma teia de intensas suposições. Com um plot bem interessante, a abordagem passiva de seu andamento assusta cada vez mais e parece se anteceder para uma grande catarse. Se ela nunca chega, porém, é ainda muito imersivo na racionalidade duvidosa de seu protagonista. E mesmo que seja muito lento nas nuances, o filme esconde um âmbito agressivo em suas constantes incitações/ menções de uma violência tímida. Assim como 'Silêncio do Céu', de Marcos Dutra, seguir essa jornada de aproximação é uma experiência brilhantemente angustiante.
Nosferatu - O Vampiro da Noite | ★ ★ ★
de Werner Herzog (Alemanha, 1979)
Assistir ao clássico de Werner Herzog no cinema é uma experiência bem construtiva. Principalmente por que toda a abordagem contemplativa para além da fantasia se torna mais física. Seja pela trilha alta que insiste em remontar o clima em cena, ou pela fotografia que artificializa ainda mais o expressionismo do qual nasceu a obra. Para um espectador de 2017, fica a dúvida se o teor cômico é algo consciente de Herzog (talvez por compreender a proximidade da fantasia absurda com sua realidade histriônica), ou se é uma reação fruto do distanciamento. Mas nem estamos tão longe de 1979, se pensar bem. O filme de 1922 não causa isso, quem sabe a "modernidade" enfraqueceu seu impacto.
O Último Trago | ★ ★ ★ ½
de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes (Brasil - CE, 2016)
Em ano que tivemos 'Shaolin do Sertão' e 'Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois' representando o cinema cearense brasil afora (em salas comerciais/festivais), o longa do coletivo audiovisual Alumbramento vem encontrando seu espaço com muita dignidade. Essencialmente por ser anos-luz diferente dos títulos citados, com uma áurea investigativa única e de determinação muito intensa. E justamente por não obedecer (ou pelo menos não aparentar) muitos critérios sistemáticos para dividir seus núcleos, 'O Último Trago' é um filme muito livre. Passeando por entre um realismo penetrado em fantasia, aventura-se para além de uma narrativa clássica. Um devaneio físico de expressão forte e sincera demais para que fique em um limbo codificado. A nota acima é somente uma primeira impressão muito instável, já que o filme merece muitas revisitas para, quem sabe, crescer cada vez mais. Um filme a se pensar.
SÁBADO | 14.01
Mãe Só Há Uma | ★ ★ ★
de Anna Muylaert (Brasil - SP, 2016)
Anna Muylaert não demorou para retornar. Depois do sucesso de 'Que Horas Ela Volta?', 'Mãe Só Há Uma' se configura como um projeto abertamente inferior em desenvoltura - mas não em abordagem. Com seu registro de interesse documental, intensifica, mais uma vez, um problema social - mas tendo como pano de fundo um discurso de liberdade. E mesmo que seus núcleos dramáticos sejam apáticos e estranhamente distantes do conflito principal, o drama ainda funciona bem pela necessidade de trazer isso à tona no cinema brasileiro.
Tangerine | ★ ★ ★ ★
de Sean Baker (EUA, 2015)
A energia do estadunidense Sean Baker, assim como suas protagonistas, não tem interesse em se esconder. A primeira sequência do filme deixa muito evidente o clima tragicômico empregado à uma trama envolvente e divertidíssima e usar o Natal como plano de fundo dessa aventura de vingança não poderia ser mais apropriado ao seu tom. Para um longa filmado com iPhones, a fotografia acompanha com propriedade seus personagens em tempo real - do entardecer à noite, permeando as situações de um visual que dualiza a personalidade com o clima da obra. O emaranhado de personagens não confunde, embora pudesse.
É Apenas o Fim do Mundo | ★ ★ ★ ★
de Xavier Dolan (Canadá/França, 2016)
Vaiado em Cannes do ano passado, o novo filme do jovem Xavier Dolan é ainda mais impressionante numa segunda revisita. O poder não está só nos diálogos, mas em como eles são posicionados na teia de relações problemáticas e neuróticas de uma família em crise. Encontrar o ponto de partida disso tudo só não é mais interessante que devanear sobre um ponto final. Dolan sabe ser corajoso o suficiente para compreender seu filme como um objeto de estudo íntimo e fisicamente próximo de seus personagens - afinal, a distância entre eles é ainda maior do que o filme nos levar a imaginar.
DOMINGO | 15.01
Deus Branco | ★ ★ ★ ★ ½
de Kornél Mundruczó (Hungria, 2014)
Beirando um ponto de vista político, 'White God' se projeta sob uma ótica trivial, porém emocionante que dualiza com uma situação mundial de "desamor" (e, talvez sem querer, convive com o caos político do qual vive a Hungria). Ao aceitar-se como tal, o filme encontra na própria realidade uma fábula que se rotula de muitos formatos – como no uso de sequências vindas dos modernos do Bond. Brilhantemente, constrói diante de tudo isso uma mensagem única de compreensão. Utópica, mas é isso que fábulas costumam deixar: um ideal a ser materializado.
BR 716 | ★ ★ ★ ½
de Domingos Oliveira (Brasil - RJ, 2016)
"Eu não sou engraçado. Eu sou triste". O novo filme do experiente Domingos Oliveira se determina muito cedo como um espaço de consciência. Isso porque, passando-se basicamente no apartamento do título, a roda de amigos festeiros compartilham suas impressões de uma vida que se realiza ideologicamente; fora dali, o dia é outro. Curioso, justamente por isso, que o roteiro "autobiográfico" esteja em 1960 à beira da catarse do golpe militar, um misto de desesperança com bravura. Um filme que se faz parecer amador, mas só como apontamento estético - talvez para evidenciar a casualidade que a trama assume ao criar suas nuances. Embora exagerado em sua dramaticidade, a se levar muito à sério. Ao traduzir esse ideal de viver intensamente alheio ao próprios problemas, causa uma sensação final de que há certa artificialidade na verossimilhança de seus dramas mas, ainda assim, uma obra muito confortável e humorada.
Animal Político | ★ ★ ★ ½
de Tião (Brasil - PE, 2015)
O cinema experimental/contemplativo brasileiro sempre consegue seu espaço, por mais que pequeno, em festivais de cinema. "Brasil S/A" de Marcelo Pedroso e até mesmo o cearense "O Último Trago" do coletivo Alumbramento, vêm atraindo foco em suas carreiras. 'Animal Político', filme do pernambucano Tião entra nesse grupo. E, como é comum nessa parcela do cinema, um filme de distinção imensa a qualquer outro experimento narrativo. Tendo como protagonista um vaca que busca o sentido da vida, Tião faz questão de compreender a improbabilidade do filme e justificar isso com a necessidade de distanciamento. Colocando em risco a "superioridade" do humano, Tião se pergunta por quê nós somos os mais racionais. Para isso, evoca, inesperadamente, Kubrick e seu apontamento igualmente inquietante: o quão somos capazes de evoluir? Esse olhar para além do que nos definimos é o norte de "Animal Político", um devaneio cômico e instigante sobre o nosso espaço e sobre o quê nossos sistemas estão se apoiando. Tião põe o dedo na formalização dos pensamentos e de uma civilização atenta ao dia-a-dia capitalista. Uma "brincadeira" que poderia ser hermética e se vestir de uma "profundidade" clássica de quem discute essas questões. Mas a abordagem consegue ser muito lúcida e não-didática. Uma pérola moderna de um cinema brasileiro pensante (ou político).
TERÇA-FEIRA | 17.01
Eles Não Usam Black Tie | ★ ★ ★ ★ ★
de Leon Hirszman (Brasil - RJ, 1980)
Assistir dois clássicos de Leon Hirszman em seguida é uma experiência tanto quanto impressionante. Principalmente pela distância entre os filmes. O primeiro foi "Eles Não Usam Black Tie", produzido pouco antes da redemocratização do país; a imersão desse contexto final resulta em protagonistas operários que temem se organizar contra a indústria que mal os enxerga como pessoas. E essa energia está muito presente, sempre se preparando para algo que está por vir. Leon posiciona esses personagens em uma crise social de enfrentamento contra um sistema injusto e compreende, desde o início, que a indústria é a antagonista, sem mais nem menos. Diante dessa obviedade, o filme é inteligente ao "humanizar" os problemas, deslocando-os para um conflito interno; convencer as pessoas de que a greve é necessária se torna um desafio de (auto) consciência. Impossível não se recordar do receio que professores da UFC (Universidade Federal do Ceará) tiveram ano passado ao aderir à greve contra a PEC 55. É incrível como a questão é exatamente a mesma: o medo da retaliação ou a indiferença social. O filme sabe construir de modo precioso a transição entre essas reações do "mundo normal" à ameaça. Encaixar toda essas questões em uma trama essencialmente real (e atual) é um mérito bem emocionante.
São Bernardo | ★ ★ ★ ★
de Leon Hirszman (Brasil - RJ, 1972)
Já o segundo, é uma imersão muito mais psicológica. Talvez principalmente por ser uma adaptação do livro homônimo de Graciliano Ramos e, consequentemente, todo narrado em pensamentos. Aliás, o filme não esconde sua língua rebuscada e ora retomada por uma abordagem cômica do próprio roteiro. Se o filme incomoda (e muito) pelos exageros da dramaticidade de Paulo Honório, aos poucos, a posição de Leon vai se tornando mais clara quanto ao seu "falso" entorno. Inclusive, do primeiro take ao último, pensei em uma meia-afirmação complexa de se fazer, mas justa. 'São Bernardo' possui talvez a melhor fotografia da história do cinema brasileiro - um olhar que ultrapassa a inspiração lírica e toma para si uma instigante relação entre sombras e devaneios, contrastando com a beleza de um interior "barrento". Honório está perdido em suas concepções do mundo e o ambiente em volta força essa perda labiríntica e imersiva na própria consciência. No cinema, ainda mais, uma experiência arrepiante.
QUARTA-FEIRA | 18.01
Divinas Divas | ★ ★ ★ ★
de Leandra Leal(Brasil - RJ, 2016)
É gratificante perceber, logo na primeira narração, que este documentário não poderia ter sido feito por outra pessoa - ele pertence à Leandra Leal, conhecida por atuar em muitas novelas da globo e, recentemente, nos destaques 'O Lobo Atrás da Porta' e 'Chatô - O Rei do Brasil'. Leandra traz uma história muito humana em torno dessas divas que estrelaram no passado com muita determinação e glamour. Aproveita a oportunidade para apontar uma caretice que passou a se formalizar em forma de censura social. A liberdade das oito personagens-título está escancarada, e acompanhar essa pesca de memórias é ao mesmo tempo que instável, instigante. Quem, de fato, eram essas mulheres? O que as levou a enfrentar uma sociedade tão mais retrógrada? Um documentário que dispensa contar dados históricos de forma didática, deixando que a emoção de todo relato ganhe evidência máxima. Afinal, envolver-se com divas que trazem histórias tão distintas é o ponto principal para que o filme valha a pena além da justificativa física de que ele precisa existir porque ninguém o fez antes.
QUINTA-FEIRA | 19.01
Lua em Sargitário | ★ ½
de Marcia Paraiso (Brasil - SC, 2016)
O primeiro título brasileiro fraco da Mostra, o filme da florianopolitana Marcia Paraiso é uma trucagem de equívocos. A atuação engessada por um roteiro muito reducionista é responsável por invalidar a organicidade da trama, e a combinação disso com um ritmo que enfrenta problemas para se definir acentua tudo. Deixando, assim, que soluções técnicas frouxas ganhem evidência, como a montagem que não deixa espaço para qualquer envolvimento ou a edição de som que insiste em deixar as transições muito óbvias. É ainda mais angustiante imaginar que há, no meio dessa aventura inexpressiva, um ponto de discussão até interessante – principalmente por tentar ponderar um tema de classes. Mas fica tudo tão bagunçado que o resultado é mortiço.
Elon Não Acredita na Morte | ★ ★ ½
de Ricardo Alves Junior (Brasil - MG, 2016)
Ao propor uma imersão na mente de Elon, um personagem que já surge complexo, o filme funciona como um trilher psicológico. Seu tom está entre o paranaense ‘Para Minha Amada Morta’ e o cearense ‘Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois’ – mas com um interesse narrativo muito distinto. O filme está mais preocupado com as pontas de um mistério que tenta se carregar com o caminhar de Elon em busca da verdade. O clima impressiona, essencialmente pelo requinte técnico do som que mergulha (não se sabe se na consciência ou na realidade). Contudo, o filme sofre de um problema que se se torna cada vez mais incômodo: sua ideia macabra e os elementos que busca não combinam com os 74 minutos. Embora já seja uma duração pequena, o filme é tão arrastado que a revelação final perde o impacto narrativo pouco depois que termina. Se fosse um curta-metragem, ‘Elon Não Acredita na Morte’ seria uma obra excelente.
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