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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Em “Crimes do Futuro”, a missão de entender a natureza do mundo

CRÍTICA Pensando sobre como nossos corpos se comportarão ao limite, Cronenberg aposta num filme adormecido pelo próprio medo

É curioso observar esse novo capítulo do David Cronenberg como uma espécie de "filme-legado", como se a essa altura de sua carreira uma releitura quieta da realidade fosse naturalmente suficiente pelo gesto premonitório, e pouco sutil, sobre o que significa dividirmos os mesmos espaços nesse planeta rumo a um futuro das piores esperanças.


Como num conto de poucas páginas ou numa crônica em monólogo, Crimes of the Future (no título original) é uma obra que se sustenta nas ideias que reúne ao redor do que se pretende ser, de fato, um filme. Esse que, envergonhado, parece que nunca está acontecendo de fato, mas apenas se preparando eternamente para uma constatação anunciada muito cedo sobre nosso destino. Quando acaba, numa cena tão curta e surpreendentemente emocionante, surge a sensação de que essa história se beneficia pouquíssimo do que descobre, sobrevivendo do lado de cá à partir de tudo o que ela já sabe e faz questão de não nos contar propriamente.


Em reação a um mundo destruído sob nossa fissura por "evoluções" de produção e consumo que desprezam a própria existência, são muitas as ficções científicas que deliram sobre uma fuga do planeta em abduções alienígenas ou viagens interestelares, compartilhando de uma visão atemporal sobre nosso desespero ter uma relação apenas com a fronteira do espaço. Mas Cronenberg nos conta aqui uma história mais violenta, uma ficção sobre como suportaremos o limite quando ele estiver assim tão perto de nós e não tivermos para onde fugir. Nesse futuro, preocupados com outro futuro, o "lado de fora" dos corpos e do mundo perdem o sentido a cada dia, fazendo com que um culto aterrador seja alimentado para o lado de dentro.


Mesmo que soe engraçado quando o termo “beleza interior” surge naturalmente na boca de seus personagens, esse humor faz parte de certa ridicularização do presente, da forma tão secular que nós continuamos explorando nossos corpos numa constante reafirmação das colonizações de que não somos bicho, de que não fazemos parte da natureza e que, por isso, nossos órgãos são nojentos e não precisamos pensar neles em qualquer parte do dia, mesmo que sejam os responsáveis por estarmos vivos. Isso vira ironia no roteiro de Cronenberg, fica ali ameaçando perder o tom a cada nova informação, especialmente pelo desequilíbrio entre o objetivo e o subjetivo, mas a curiosidade e o grafismo se mantêm de pé.



Ao mesmo tempo, a parcimônia de tudo o que acontece também revela o quanto aquele universo estranhíssimo não o é para seu autor e tampouco para seus atores, que juntos constroem uma realidade bastante crível com regras particulares cujas intensidades são sempre surpreendentes, apesar de todo discurso categórico: "Cirurgia é o novo sexo" ou "Precisamos evoluir para consumir nosso lixo", falas que surgem para resumir algo que não faz questão de ser digerido com mais naturalidade. Enquanto Léa Seydoux transfere um grau de constante maravilhamento diante de sentimentos sempre novos e Viggo Mortensen se constrói de forma integral sobre a fragilidade de seu "dom", sobra a todos os outros um medo imenso, uma eterna dúvida sobre viver no suspense do que estão se tornando – a exemplo da fala acanhada de Kristen Stewart e da condução sempre sigilosa de Welket Bungué.


Mesmo com tantos mistérios em jogo, há poucos cenários, poucas transformações, fazendo com que a construção desse enigma nunca proponha um impacto integral, preferindo se comunicar por dosagens adormecidas, sem graves, volume ou fôlego, mesmo que em parceria com o ritmo de todos os outros elementos em curso – a montagem que respeita essa velocidade e uma trilha sonora repetitiva que sabe chegar nos momentos certos. Ou seja, essa cara de um pomposo "filme de quintal" também combina com a esfera opressora de um mundo que não fazemos ideia de como funciona assim tão silencioso, escondido e sucateado pelas próprias instituições. Há também nisso sensações contagiantes já que o texto do Cronenberg, mesmo afogado, nos abandona com um grau assustador de desconfiança sobre nós mesmos, tão humanos, que ainda estamos aqui.

 
 

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