Na colisão e no perdão, as guerras sem fim de ‘Os Banshees de Inisherin’
CRÍTICA Com nove indicações ao Oscar, novo filme Martin McDonagh atravessa humor e desastre
Na corrida pelo Oscar, sempre estão reservados alguns lugares para filmes cujo tema e discussão fogem das amarras do espetáculo ou de pretensões contemporâneas, histórias que existem sem que exista uma demanda de mercado em si, geralmente obras pequenas em encenação e estrutura. Pode acontecer dessas vagas serem preenchidas por filmes insossos como Minari (2020) e Brooklin (2015), mas também podem ser como Moonlight (2016) e Lady Bird (2017). Em 2023, o único na corrida de Melhor Filme parece ser este tão pequeno e simpático Os Banshees de Inisherin, que chega ao Brasil com essa tradução inacreditável.
Quando estreou no 79º Festival de Veneza, o novo longa de Martin McDonagh causou reações modestas. Colin Farrell saiu de lá premiado – e de mãos dadas a Cate Blanchett de Tár, dupla que se repete na indicação desse Oscar –, recebendo inclusive diversos comentários de que esta seria a melhor performance da sua carreira, logo numa história “boba” sobre dois ex-amigos irlandeses que colidem suas angústias numa ilha da qual não podem fugir em plenos anos 1920.
A melhor coisa desse filme é ele ser assim tão simples e gostar tanto disso. Às vezes parece um conto, uma fábula, mas ele sempre dá um jeito de voltar a ser real: a sensação de perder um amigo que é como se perder de si. Parece que é tudo uma grande piada e um pequeno lamento sobre a guerra que divide as Irlandas do outro lado do mar. Escuta-se as explosões, às vezes até se vê, mas o continente só parece cada vez mais longe daquela realidade. Do lado de cá, ninguém nem sabe ao certo qual a razão da guerra ou quem está atacando quem – “Não era mais fácil quando éramos unidos e só matávamos ingleses?”, pergunta o policial bêbado.
Dentro dessa ilha é tudo uma grande repetição: os dias, as paisagens, as rotinas, as pessoas, os caminhos, e a cinematografia faz de tudo para manter essa sensação constante, das imagens quase sempre panorâmicas às iluminações e trilhas contemplativas. Por isso incomoda tanto o abismo que se abre entre Pádraic e Colm, duas peças que, de repente, quebram a engrenagem deles e do espaço em que vivem. “Estava tudo bem até ontem…”, questiona Pádraic sobre como seu mundo pôde ter mudado tanto assim. Pelo recorte temporal que curiosamente nos priva do passado, eu não consigo imaginar como era essa amizade antes do caos, se é que um dia ela existiu, dúvida que só torna a experiência moral, ética e afetuosa desse filme cada vez mais fascinante, mesmo ele sendo assim tão simples.
Recheado de inocência e esperança (condições talvez jamais vistas sobre seu rosto), Colin Farrell olha para nós e vemos tudo, principalmente uma solidão nunca encarada por alguém que amadureceu sem perceber que o tempo passa e as pessoas com quem cresceu, inevitavelmente, um dia vão embora. Que até ele mesmo um dia vai embora. Ao descobrir isso, ele muda. Os outros mudam. E a guerra continua. Diante dessas questões tolas e graves, Os Banshees de Inisherin é mesmo um grande filme porque consegue construir uma história sobre amizade, memória, paz e violência sem precisar de grandes metáforas, reviravoltas ou sequer de barulho. O medo que Pádraic sente de perder seu mundo, afinal, só emociona mesmo porquê explode no silêncio.
Direção e Roteiro: Martin McDonagh
Edição: Mikkel E.G. Nielsen
Direção de Fotografia: Ben Davis
Desenho de Produção: Mark Tildesley
Direção de Arte: Paul Ghirardani, Christine Fitzgerald e Tim Devine
Decoração de Set: Michael Standish
Trilha Sonora: Carter Burwell
Som: Christer Melén
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