Arthur Gadelha
"Annette" se desmancha num espetáculo ridículo e cativante
CRÍTICA O primeiro filme de Leos Carax falado em inglês sobrevive da ironia
"Podemos começar?" - assim começa o novo delírio do cineasta francês Leos Carax, assumindo de forma objetiva a proposta de um filme que se anuncia tal qual o filme que se constrói em Holy Motors (2012) na agressividade da invenção. Para além do que essa ideia significa numa história sobre dois artistas de teatro, Annette sobrevive principalmente de um manifesto irônico relativo à natureza encenada do que pretende todo musical; seja nos palcos ou nas telas, esse gênero assume a ficção de tal modo que perdemos o direito ao incômodo com a "vida real" sendo interrompida com as estrofes cantadas para assumir o óbvio: cinema é uma manifestação das "coisas", mas nunca uma mera representação delas. É genial, e por isso um dos gêneros mais traiçoeiros.
Diante da maquinação do tédio, o artifício se sobrepõe à suposição da realidade quando Annette, constantemente, estica a dramaturgia para esvaziá-la de qualquer emoção ao mesmo tempo em que é exposta. No longuíssimo primeiro espetáculo de Henry, vivido pelo ainda mais sisudo Adam Driver, a plateia reage com graça a uma performance desastrosa na figuração da tragédia pessoal que é "ser artista". "Nós prometemos que vocês iriam rir", anuncia o texto da música ao que a plateia responde com gargalhadas ritmadas - ora, se o palco é ficção por que não a plateia? Carax está tão ciente desse sarcasmo que o faz de forma caricata, tornando Henry num personagem cada vez mais perdido no egocentrismo da fama confundida com as sensações que o compõem. Apesar de se dizer comediante pelo objetivo de "desarmar as pessoas", é ele mesmo que se engessa em negação à qualquer coisa que fure a bolha da fábula que é ser ele.
"Contraintuitivo, baby...
E ainda assim nós permanecemos
Nós nos amamos tanto"
Nessa missão suicida, e por vezes enfadonha, é uma pena que a presença de Marion Cotillard seja tão constantemente atribuída como sintoma de um romance sem dimensão. Em sua expressão fria e sempre aflita, a passagem quase fantasmagórica de Ann pelos palcos sombrios, por outro lado, constrói um suspense em torno do limite do drama, do quão devota a experiência desse filme é à fatalidade individualista, e por isso sem plateia, sem resposta, enclausurada. Como o elo entre Henry e Ann precisa ser alimentado na superfície, a obra vai se afogando na insistência da autodestruição - talvez Ann fosse mesmo aquela imagem, mas Henry não, o que também figura uma tolice imensa da trama.
Depois de muitas surpresas e frustrações, essa sensação engasgada da glória se confirma quando entra em cena a própria Annette, o momento em que Carax finalmente se desarma. Nascendo desse conflito barulhento, a criança quieta é como o personagem Uno de Carro Rei, nascido de dentro da fábula e por isso proprietário de dons sobrenaturais. Quando nasce, as enfermeiras cantam emocionadas que Annette "está fora desse mundo", o que a história assume comicamente como um milagre do cinema.
Se toda a estética visual e sonora já fosse até ali suficientemente assustadora com drama, humor e tédio caminhando lado à lado no delírio de cores e encenações intermináveis, a partir daqui o autor se supera na revisão do caos. Ganhando vida numa boneca-marionete, Annette surge como um passe-livre para o escracho da "arte distópica", discurso que até se anuncia lá no começo antes dos 10 minutos de filme, mas de forma modesta e, até então, com rotas de fuga. Quando a boneca começa a cantar, porém, não há mais volta para o estrago que é a falsa vida de Henry e o surto psicodélico de Carax.
Nesse universo, a música composta pelos irmãos roteiristas Ron e Russell Mael soa densa o suficiente para causar sentimentos dos mais diversos em torno da monotonia que direção e montagem dão às suas apresentações. A recorrência charmosa de We Love Each Other So Much, a floresta de Aria, o monólogo confessional do "acompanhante" vivido por Simon Helberg, ou até mesmo o voo de Annette à maravilha - para além da areia movediça em que somos conduzidos, a magia das composições nos faz pensar que o prazer da contemplação talvez seja o maior dom da fabricação de histórias.
Em certo grau, até Amir Labaki pode concordar que é tudo mentira na essência do que significa "desarmar-se" para o cinema enquanto espectador. Sendo assim, Annette é um filme que precisa do limite para subverter essa boba dualidade entre "a vida e a arte" imposta por inúmeras reflexões que evocam os musicais como objetos que "põem a ficção à prova" - o que Leos Carax faz aqui é assumir o charme do absurdo na incorporação do ridículo para revelar que todos nós fazemos parte da ironia que é esse espetáculo presunçoso e tragicamente desagradável.
★★★★★
Direção: Leos Carax
Roteiro: Ron Mael e Russell Mael
Direção de Fotografia: Caroline Champetier
Direção de Arte: Florian Sanson
Edição: Nelly Quettier
Elenco Principal: Adam Driver, Marion Cotillard e Simon Helberg
País: França, EUA
Ano: 2021
Duração: 140 min
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