Arthur Gadelha
Na autorreferência, "A Mão de Deus" sobrepõe alegria e tragédia
CRÍTICA Voltando no tempo, Paolo Sorrentino nos conta parte de sua história em autobiografia recheada de momentos cativantes
Será que todo cineasta está condenado a, em algum momento de sua carreira, contar sua própria história? É uma possibilidade tentadora demais para que não seja considerada, já que máquina e combustível estão em mãos - os que ainda não fizeram, tenho pra mim que pensam. Naturalmente, como uma busca por justiça, quem sabe, a honra de sua vida, disfarçada de uma história que deveria importar a todos nós. O que Paolo Sorrentino faz aqui é bem mais esperto que as ladainhas burocráticas que temos visto no cinema contemporâneo (especialmente o digital, o de curta-metragem), porque o faz num jeito esparsado, compondo emoções de forma quase mágica apesar de nunca tirar o pé do chão.
Percorrendo os anos 1980 numa Nápoles chacoalhada pela vinda de Diego Maradona, Fabietto é apresentado como um adolescente suspenso da forma barulhenta que sua família e amigos preenchem suas vidas, observando aquelas complexas personalidades e paisagens sufocantes na mesma impressão que temos nós, espectadores, cientes já com 20 minutos de filme de que ele é exatamente isso: uma imersão pautada delicadamente por aquela atmosfera de carinho, grosseria e paixão.
Afastando-se das hipérboles, eventos e transformações comuns aos coming-of-age americanos, Paolo confia até demais nessa abordagem sensorial, quase misteriosa, sobre o que significou para ele estar vivo naquele momento tão recheado de alegrias e tragédias pessoais, usando o tempo a seu favor na lenta construção dramatúrgica e estética de cada momento. O que já estava claro em A Grande Beleza (2014), vencedor do Oscar Internacional, aqui é elevado à máxima potência: a naturalidade impressionante em como ele consegue mudar de tom, clima e humor, entrando na alegria com a mesma delicadeza com que invade a melancolia e o desespero. Da epifania de ver Maradona fazer milagre em campo ao tesão recolhido de um adolescente, de mortes inesperadas à coragem de encarar a cidade à noite e suas paisagens; são emoções muito distantes, mas construídas de forma tão criteriosa que impressiona - e fere - sem soar mecânico.
Parte imensa dos méritos dessa narrativa confortável está nas imagens abertas e arejadas da fotógrafa Daria D’Antonio, responsável por propor constantemente uma sensação de quase-sonho enquadrando com calor tanto as paisagens belíssimas e iluminadas de Nápoles quanto as paredes fechadas e escuras das casas – às vezes até com um humor delicioso, como na sequência em que a família vai na casa vizinha pedir desculpas.
Nesse jogo dramatúrgico, por vezes teatral na disposição de personagens, Filippo Scotti, Toni Servillo e Teresa Saponangelo formam um trio cativante na composição dessa liga interna e contraditória de uma família muito junta. Se Filippo se mantém toda projeção num lugar mais passivo de observação, sempre interagindo mais com seu toca-fitas do que com as pessoas ao redor, Toni e Teresa são construídos como a alma dessa história, um charme absoluto de presença em tela que lá pela metade vai fazer ainda mais sentido.
Na segunda metade, porém, o filme vai se conformando tanto com o baque do ponto de virada que a trama, e até sua forma, vai se tornando convencional demais para uma história que começou naquele extenso panorama sobre como é possível a sensação de uma cidade estar dentro de uma família, e não o contrário. E mesmo que seja essa a ideia, de talvez dar um eco à vida de Fabietto, essa solidão vai se repetindo e se esgotando na sua relação com os personagens – é como uma outra história que Paolo não havia nos preparado. Apesar de todas referências aos acontecimentos reais dessa outra parte de sua vida, ele há de ter previsto que isso não soaria orgânico para todo espectador, especialmente por deixar que seu filme seja todo tão devoto à essa experiência enfadonhamente “masculina” – traço em que o autor se perde em Youth (2015), por exemplo.
Se isso não fosse morno o bastante, mesmo com aquela cena intrigante da Baronesa, toda a sequência da conversa com o diretor de cinema no ato final vai se firmando naquilo que A Mão de Deus não era: burocrático, óbvio e sem respiro na autorreferência de um cinema que se anuncia. Diferente do que fez Almodóvar em Dor e Glória (2019) ou até mesmo Lana Wachowski em seu Matrix Resurrections (2021), aqui surge como elemento-surpresa que estatela sua irreverência.
È stata la mano di Dio (no original italiano), porém, nunca deixa de ser um filme bonito e delicado, cuja imersão silenciosa parece gritar pela imensa tela do cinema. Se eu fosse assisti-lo como a Netflix deixa, seria em qualidade 480p na TV do meu quarto, e eu me irritando com os pixels saltando dos panoramas sufocantes que Daria faz sobre Nápoles. Graças ao São Luiz, cinema de praça aqui de Fortaleza, essa história chegou em mim do jeito certo – apesar de outros filmes como Roma (2018), O Irlandês (2019) e até O Ataque dos Cães (2021) terem sido exibidos lá, essa foi a primeira vez que assisti um filme Netflix dentro de um cinema. Foi, inevitavelmente, um evento inesquecível viver todos esses anos de Fabietto naquela sala escura e vazia por duas horas que pareceram 40 minutos. Que saudade fiquei de Maria.
Direção e Roteiro: Paolo Sorrentino
Montagem: Cristiano Travaglioli
Fotografia: Daria D'Antonio
Direção de Arte: Saverio Sammali
Efeitos Visuais: Rodolfo Migliari
Música: Lele Marchitelli
País: Itália, EUA
Ano de Lançamento: 2021
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