Arthur Gadelha
"A Lenda de Candyman": quem está no lugar errado?
CRÍTICA Revisitando a fábula urbana de 1992, obra de Nia DaCosta produzida por Jordan Peele reinterpreta uma cidade alheia aos mitos
"Eu sou as escritas na parede, o sussurro na sala de aula. Sem essas coisas não sou nada". No primeiro capítulo dessa saga, em 1992, é nessa fala profética que o intimidador Candyman revela o discurso literal, porém recheado de outras leituras, do poder social da mitologia; nessa trama e nas diversas lendas urbanas, sejam fábulas sustentadas pela permanência de princípios ou apenas pela mera conspiração, a imortalidade das histórias se dá principalmente pelas coisas que não se resolveram e que, por isso, foram condenadas ao passado. Na trama de Bernard Rose, esse contexto urbano se entranha na observação de um conflito racial que nunca se deu por encerrado nos EUA. Estendendo essa mitologia sobre os desdobramentos que permanecem contemporâneos quase 30 anos depois, o que Nia DaCosta propõe nessa obra em 2021 é tão corajoso quanto brilhantemente arriscado.
Lembrando com ironia da paródia que Dan Gilroy faz no tedioso Velvet Buzzsaw (2019), os personagens de Anthony e Brianna constatam silenciosamente o oportunismo da exploração racial na hierarquia dos "sentimentos artísticos" onde crime e sofrimento são elementos "poderosos". Fazendo ligação direta com o contexto secular da criação do primeiro Candyman, essa história avança como uma constatação da imobilidade de uma sociedade que insiste em não resolver nada e que alimenta, portanto, uma nova e autêntica indignação para o conto.
Quando essas peças são posicionadas, os caminhos se tornam evidentes bem cedo no roteiro de Jordan Peele, Win Rosenfeld e Nia DaCosta, o que se torna uma curiosa ferramenta de suspense ao invés de se tornar uma narrativa cansada. Para além das rápidas conclusões e reviravoltas, a persistência de uma dor eterna é arrepiante também para além do texto, mas nas imagens construídas com uma impressionante devoção ao gênero e na música que nunca deixa a tensão despencar.
Seja nas revelações parciais em reflexos escondidos ou até mesmo nas revelações literais, a tensão se potencializa à medida em que a narração se assume uma história sem segredos. Quando Anthony se vê, daquela forma, no espelho da casa da crítica de arte que o chamou para entender a coincidência de sua obra com a violência evocada, a história criminosa dos EUA atravessa tanto a sociedade em si quanto a representação do mundo real em expressões "artísticas". Como serve a denúncia estática se depende de quem pode acessá-la e refleti-la? Importa se, para os olhos "especializados", são óbvias?
Quando os créditos iniciais surgem sobre uma cidade nevoada de ponta-cabeça, já aparece ali a observação de um mundo alheio à razão das revoltas na rotulação de meras mitologias. Diante disso, é visível o quanto ao trabalho de direção da Nia aproveita o vigor dessa trama ao passo em que Anthony vai se rendendo ao que entende ser seu destino. A performance ora intensa ora crua de Yahya Abdul-Mateen II alimenta muito bem o ritmo da ação e do terror, assim como Teyonah Parris proporciona um incômodo generalizado por mais que se ponha em posição de negação por grande parte da história. As aparições do(s) Candyman(s) são aterradoras por uma escolha curiosa do que precisa ser realmente apresentado, e o terceiro ato minimalista é preenchido de fôlego nas últimas cenas - a última, em especial, por motivos óbvios.
O que A Lenda de Candyman supera em relação ao seu antecessor originário (sem levar em consideração as sequências e nem propriamente o conto de Clive Barker) é a curiosa ironia de um ponto de vista branco, ao mesmo tempo em que honra os significados sólidos e subjetivos de uma fábula literal sobre a experiência de uma cidade que impõe suas condições de ocupação. Quando James Baldwin diz que “a história dos negros nos EUA é a história dos EUA” é a constatação imediata de que histórias como as que deram origem ao Candyman, definitivamente, não são mitos e precisam ser eternamente contadas para todo mundo.
★★★★★
Direção: Nia DaCosta
Roteiro: Jordan Peele, Win Roosendfeld e Nia DaCosta
Direção de Fotografia: John Guleserian
Trilha Sonora: Robert Aiki e Aubrey Lowe
Montagem: Catrin Hedström
País: EUA
Ano de lançamento: 2021
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