Tiradentes: No escracho de "Voltei!", um Brasil que machuca
CRÍTICA Novo filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa estreou na Mostra Olhos Livres da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes
"O Brasil machuca viu". A frase dita por Alayr (Wall Diaz), ainda com 15 minutos de filme, deixa óbvio ainda cedo que o recado de Voltei! é uma mensagem mais direta impossível sobre sua temporalidade nada dúbia. Um país apagado na expectativa de chutar seu "líder" assassino - ou seja, somos nós nesse 2021, certo? De certo modo, a franqueza nada sutil no cinema de Glenda e Ary me impressiona de forma especial porque esse traço se transforma numa personalidade tão forte que a afeição se torna inevitável. É se afastando da naturalidade enquanto, contraditoriamente, veste-se dela, que seus filmes se tornam algo entre o cinema, teatro, performance e manifesto pessoal. Aqui não é diferente.
Em Voltei!, duas irmãs se reúnem numa mesa à luz de velas enquanto esperam a votação de um impeachment contra o presidente responsável pelo que parece ser um novo período ditatorial nesse Brasil de 2030. Entre curiosos relatos da rotina da delegada Alayr e algumas meias memórias de Sabrina, ambas ficam na expectativa de que alguma coisa realmente aconteça ali naquela sala. Nesse sentido, como um "filme de quarentena", estas personagens estejam talvez ainda mais enclausuradas que a personagem vivida por Valdinéia Soriano em Café com Canela (2017) porque seus confinamentos não estão relacionados apenas à experiências pessoais.
Então, de repente, algo acontece. A irmã, até então morta pelo novo regime militar, ressurge para acompanhar essa votação histórica e, de repente, aquela solidão bem Cavalo de Turim, some de vez e dá lugar àquela energia de Até o Fim, filme anterior da dupla. Sobre a mesa, alternando copos de cerveja, pratos de comida e um violão, as três mulheres revivem suas resistências enquanto especulam sobre as possibilidades de um futuro. É incrível como à partir desse contexto bagunçado, o filme consiga ser realmente divertido.
A antipatia de Alayr e o histrionismo de Fátima (Arlete Dias), ambos traços reciclados do filme anterior, é de um primor cômico que só parece caber nessa realidade. A partir dessa simpatia, o ritmo da história vai se atravessando entre a paz do momento e a completa desestabilização do país - um Brasil que visto 20 anos no futuro ainda é exatamente como esse nosso. Curiosamente, a estreia do filme na Mostra de Tiradentes calhou com as recentes movimentações no congresso e na imprensa acerca de um impedimento do mandato de Jair Bolsonaro, presidente responsável pela pandemia da Covid-19 estar no estado que está hoje no Brasil, em janeiro de 2021.
Voltei!, portanto, me parece o cinema de Glenda e Ary feito na brincadeira, a essência de um jeito inventivo que não encara o cinema como suporte da realidade, mas como intervenção sobre ela, calcado na conversa e na intensidade das interpretações como um caminho para chacoalhar a plateia de forma exclusiva.
★★★★
Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa
País: Brasil (BA)
Ano: 2021
Essa crítica faz parte da Cobertura da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes
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