Tinta Bruta: a solidão pintada de rosa
É interessante quando, no cinema, a solidão não é retratada apenas como um estado, mas como um processo; por que aquela pessoa se sente sozinha e como sustenta a própria realidade. O que Tinta Bruta faz enquanto um filme de "estudo de personagem" encontra uma convergência muito bonita entre a existência de seu protagonista e a cidade, personagem fria, tímida e silenciosa que está no plano de fundo dessa história.
"Minha vó dizia que o centro de Porto Alegre vai afundar", diz uma das personagens após revelar um acontecimento pessoal de tristeza. Essa justificativa na melancolia dos espaços e das pessoas insiste ao redor da insociabilidade de Pedro, o homem-garoto que sobrevive da imagem erótica que vende para uma "sociedade" digital tão solitária quanto ele e os membros perdidos daquela cidade.
Na obra, o sexo pouco tem relação com o desejo, como se fosse o bastidor da indústria da pornografia ou prostituição, transformando-se numa ação secreta e marginal. Ganha também o traço da criminalização em relação imediata ao delito de Pedro, principalmente porque o sexo, assim como sair para caminhar pela cidade, é uma experiência de precisar se relacionar com o outro – tudo que mais lhe aflige.
Pedro, porém, não vive num contexto de marginalização como as industrias citadas acima; é essa contradição que o torna especial para o cinema brasileiro. O prazer unilateral e onírico é ponto de partida tanto para a relação entre solidão e sobrevivência, quanto para o próximo passo dado a partir do segundo capítulo (e mais interessante) da obra.
Embora seja dividido em três partes pintadas como atos, compreendo o filme como uma linha reta que pressiona seu protagonista por todos os lados esperando que, de certo modo, exploda. Pelo caminho, Pedro encontra três personagens que vão mexer com sua realidade, assim como evoca a canção enérgica “Flerte Revival”, da carioca Letrux, que surge numa das cenas “pops” que revigoram a consciência secreta e “underground” da cidade interpretada como sua vida.
Nessa abordagem abertamente “moderna” em falar sobre uma sociedade desunida, Tinta Bruta se traveste de cinema pop, sonora e visualmente, buscando todo o proveito de um “gogoboy” online que se pinta de luz-neon. Nessa esfera está a gênese da obra porque aos poucos vai significando cada vez mais à plateia pelo impacto estético, e cada vez menos para Pedro, dando espaço para sua transformação que custa a encontrar espaço na estrutura do roteiro.
O que pesa em dúvida na história de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon (ambos do ensosso Beira-Mar), no entanto, é a dimensão dessas transformações. É enigmática a presença da avó, quase como um espírito de conforto, mas custa a convencer como contribuição para além de uma cena específica. No dito “terceiro ato”, o retorno da ameaça como gatilho ao impulso violento de Pedro também evoca muitos pensamentos, mas o acontecimento é isolado logo em seguida. O destaque fica com Leo, vivido por Bruno Fernandes com o mesmo enigma que Shico Menegat evoca um Pedro assombroso. O laço estabelecido entre os dois, partindo do necessidade de identificação e a posterior quebra de alguns limites narrativos, garante ao filme uma coragem que o humaniza. O corpo nu se ressignifica, e a obra registra não somente os descaminhos da solidão, mas principalmente o surgimento do desejo.
Durante o amadurecimento do filme, há estranhamento em torno de seus rumos, sugerindo, em certo ponto, que se perdeu. Pedro parece ter mudado pouquíssimo desde a sequência no tribunal até o clímax do seu desespero, mas bruscamente, Tinta Bruta se transforma. É janela de vidro que se quebra e estilhaça, uma mudança que inviabiliza por completo o retorno e faz de Pedro um novo personagem.
Tinta Bruta é irregular até alcançar essa explosão, mas incita em seguida uma "retroexpectativa" das mudanças que aconteceram sem termos percebido e as que ainda podem acontecer dali para frente. É uma superação do espaço que lhe pertence, e pouco importa como efetivamente a história segue. Ela conseguir seguir já é uma novidade suficiente.
★★★★
Direção: Filipe Matzembacher e Márcio Reolon
País: Brasil
Ano de lançamento: 2018
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