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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Na condenação de Gotham, Matt Reeves faz Batman de refém

★★★★★ No balaio de apostas nostálgicas do cinema norte-americano, a aventura de Matt Reeves é a que tem mais charme e confiança


ROBERT PATTINSON as Batman in Warner Bros. Pictures’ action adventure “THE BATMAN,” a Warner Bros. Pictures release.

A cada novo capítulo do Batman, são imediatos os diálogos com a ruptura estabelecida há quase 20 anos pela aposta bem-sucedida de Christopher Nolan. Diferente de adaptações anteriores que nos transportavam para o universo mitológico do herói noturno de uma noite que nunca acaba (no drama e na comédia), Nolan fez o caminho inverso para tentar outra popularidade do personagem num novo século, trazendo-o para este “mundo real” – por isso sua Gotham é pouquíssimo suja, nada assustadora e sóbria demais. De toda forma, causou uma revolução em cadeia, construindo tanto admiradores quanto céticos em torno dos rumos em que a fantasia poderia seguir adiante.


Nesse sentido, saí da sala de cinema contente que The Batman consiga ser a consequência mais corajosa daquilo que Nolan deu um start. Nem a cidade robusta ocupada por Christian Bale, nem a sem personalidade em que Ben Affleck posava friamente. A Gotham construída neste novo capítulo é grave, intimidante, uma colisão de tudo o que já se imaginou desta cidade, como se na deliciosa cenografia do Tim Burton nos anos 1990 se substituísse a fantasia pela tragédia.


Acho importante começar esse ensaio pela percepção de Gotham porque ela é quem dá constantemente o tom de como aquela figura tão fabular ocupa o imaginário das pessoas e de seu próprio organismo. Mais personagem que o próprio Batman, uma cidade cuja desigualdade constrói tanto os heróis quanto os vilões, espírito que já pulsou forte na jornada do Pinguim de 1992. The Batman se constrói como um “filme de origem” ao passo em que, para Bruce, descobrir a podridão da cidade é descobrir a própria incoerência como parte política de uma estrutura sem solução, sem saída, condenada pela própria fundação da qual sua família faz parte.


JEFFREY WRIGHT as Lt. James Gordon and ROBERT PATTINSON as Batman in Warner Bros. Pictures’ action adventure “THE BATMAN,” a Warner Bros. Pictures release.
© 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

Ciente dessa narrativa, o filme destrincha já no prólogo a decadência de uma criminalidade urbana que se sente ameaçada pelo vigilante quase mítico que “pode estar em qualquer lugar”. De que forma, porém, os verdadeiros vilões se sentiam ameaçados àquela altura? Essa tensão, ainda não confrontada, é bem traduzida na cena do crime inicial, quando Batman entra como uma penumbra silenciosa e intimidante com apoio do Comissário Gordon – aqui já temos uma chave essencial na incorporação de Robert Pattinson e Jeffrey Wright numa dupla criativa e constantemente conflituosa nas estranhas margens de leitura sobre o que significa corrupção. Como o roteiro de Matt Reeves e Peter Craig faz bem, ambos são personagens perdidos que tonteiam sobre as divagações enquanto, sem desconfiarem, são partes das respostas.


Quando as charadas vão engatando, eles vão seguindo as ordens do vilão à risca, vão jogando o jogo sem descobrirem quase nada além do que se projeta. Ou seja, durante os longuíssimos minutos dessa jornada, Batman e Gordon vão sendo feitos de refém pela própria cidade, caminhando sobre o mistério de forma protocolar, são apenas peças do jogo. Se por um lado isso torna o filme muito estático e enfadonho, por outro representa uma coragem admirável ao afastar o personagem de seu caráter meramente “justiceiro”, protetor, líder dos movimentos, para torná-lo uma carta do baralho. Ciente desse ciclo interminável, a enigmática Zoë Kravitz constrói uma Selina com vida própria que está do lado de fora jogando o próprio jogo. Quando se aproximam, a energia caótica colabora com o ritmo inebriante de uma história sem esperanças.


ZOË KRAVITZ as Selina Kyle in Warner Bros. Pictures’ action adventure “THE BATMAN,” a Warner Bros. Pictures release.
© 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

Para fazer com que tudo isso não soe superficial ou repetitivo, a direção de Matt Reeves é esperta por nunca abandonar a cadência, as pausas, a densidade que estão nos cenários, nos olhares, nas coreografias de luta e até mesmo nas cenas de ação que são construídas demoradamente com ponto de partida, clímax e epílogo, cada uma. A perseguição do Pinguim, a ameaça do Colson, as lutas na boate, são todas partes de um mesmo organismo, um filme que opera sem intervalos, na mesma tensão do início ao fim. A trilha sonora do Michael Giacchino ganha uma urgência assustadora, como se embalasse a fantasia do Danny Elfman com a gravidade inigualável do Hans Zimmer. The Batman, portanto, chega em mim como um projeto tão consciente da consequência que integra quanto disposto a entregar sensações dissonantes que pouco ferem, de fato, o que veio antes. A revolução deste novo capítulo é quase silenciosa, modesta, como prólogo de algo maior que vem pela frente. Será? Tenho medo.

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