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  • Foto do escritorArthur Gadelha

No silêncio de uma cidade submersa, ‘Represa’ colide memória e invenção

CRÍTICA Após estrear no prestigiado Festival de Rotterdam, longa-metragem cearense chega às salas de cinema numa construção sobre o passado da nossa própria história

Com certa familiaridade a todos nós, suponho, diante de nossa irrigada cultura de novela na televisão e no cinema, essa ideia de “retorno” é persistente. Os motivos são vários, mas acredito que a essência está no combate entre ansiedades e frustrações que o ato emprega: voltar para um familiar esquecido, para uma memória, para uma vingança… "Represa", primeiro longa de Diego Hoefel, põe em conflito a ida de alguém que não sabia, até aquele momento, que fazia parte dali. Era só a partida de alguém que nunca tinha ido lá, mas vai se transformando num retorno.


Na trama, Lucas viaja a uma cidade no interior do Ceará para encontrar um terreno que sua falecida mãe tinha naquela cidade antes dele nascer muito longe, no Rio Grande do Sul. Quando chega lá, a cidade, porém, já é outra. Como logo se anuncia, este que é o grande personagem central: Jaguaribara, cidade que foi inundada no começo do século para a construção de um reservatório. É como a cidade fantasma de Cococi que guia o delírio de Mãe e Filha (2012), ou como as dunas que soterram o protagonista de Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem (2013). Aqui, Hoefel parte da história da cidade para criar uma memória submersa, escondida, um sentimento que há muito tempo não respira mais.


Ao redor do processo em que Lucas se aproxima dessa realidade, somos envolvidos pelo constante engancho de alguém deslocado. Apresenta-se uma situação sem rotas de acesso, então os personagens, os cenários, as conversas, as imagens, tudo trava. Não vai nem pra frente nem pra trás, um dilema comum aos filmes mais quietos que correm esse grande risco de ficar se anunciando demais sem resposta. Mas "Represa" até que se beneficia bem dessa construção porque, curiosamente, ele destrava no humor - às vezes discreto, involuntário, às vezes no norte da encenação. David Santos, na pele do gerente desleixado da pousada, e Jenniffer Joingley, filha do irmão perdido, por exemplo, dão conta tanto da tensão quanto do alívio que gira em torno da existência quase alienígena de Lucas naquele lugar - este vivido por Renato Linhares com um suspense intransigente. Até Gilmar Magalhães, que dá vida ao sisudo Robson, engata algumas descontrações envolventes.



"Represa", cujo título ironiza a existência de uma barragem que não tem o que barrar na escassez, avança sobre a repulsa de Robson que aos poucos vai sendo desfeita com uma conciliação ensossa. No lugar de um embate que dure mais do que rápidas fugas dramáticas, o filme prefere confiar em saltos que levam no tempo as próprias emoções que o enquadro familiar tanto nos preparou para ver. Nessa falta de tato, aliás, ao mesmo tempo em que Hoefel parece reprisar a cadência do roteiro que ajudou a escrever para o fantasmagórico Elon Não Acredita na Morte (2016), sua direção também nos lembra alguns filmes com ritmos semelhantes produzidos no mesmo estado em que nasceu, também o mesmo do protagonista. A Mulher do Pai (2016), Pedro sob a Cama (2017) e O Acidente (2022), são exemplos tão semelhantes em construção de suspense, revelação e colisão, que facilmente poderiam integrar uma mostra sobre roteiros em velocidade baixa.


Essa linearidade emocional no conflito entre Lucas e Robson evoca uma espécie de empatia limitada porque a linha é tênue entre a causa de preocupação e indiferença que agem sobre o conflito. Ao mesmo tempo, a contemplação de um imbróglio sem destino se beneficia na lenta transformação de seu protagonista, que desde cedo se revela distante da pose técnica e operacional cobrada pelo seu outro irmão. Ao invés de seguir as regras, de ficar à margem, ele mergulha, relacionando-se diretamente com aquela realidade ao por em xeque a existência de sua fictícia origem. Se não vemos o futuro, imaginamos, assim como aqueles irmãos tão incompatíveis precisam agir para inventarem juntos um passado em comum. Diante do que está posto, esse breve sentimento já parece o suficiente para que essa história encontre seu silencioso destino.

 
 

Direção: Diego Hoefel

Roteiro: Diego Hoefel, Aline Portugal e Marcelo Grabowsky

Produção: Ticiana Augusto Lima

Direção de Produção: Cesar Teixeira

Direção de Fotografia: Daniel Correia

Som Direto: Lucas Coelho

Direção de Arte e Figurino: Thaís de Campos

Montagem: Lívia de Paiva

Edição de Som e Mixagem: Lucas Coelho

Trilha Sonora: Roberto Borges, Clau Aniz

Elenco: Renato Linhares, Gilmar Magalhães,

Jenniffer Joingley e David Santos

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