Arthur Gadelha
Tiradentes: "Panorama" encara a falácia do progresso urbano
CRÍTICA Diante da lógica de um país violentamente injusto, documentário paulista contrapõe cidade e projeto
Para além da inspirada ficção de Bacurau, o cinema brasileiro contemporâneo vem sendo cada vez mais presente nas inconsistências de um país desestruturado. Afinal, desde que fomos invadidos, o “progresso” têm sido uma alternativa aos grupos de poder, nunca um projeto massificado, nem mesmo quando operam interesses trabalhistas entre as classes socioeconômicas. Muita coisa se moveu com a passagem de Lula pelo governo federal, mas não necessariamente as estruturas, muitas delas tão estáticas que petrificaram.
Panorama, de Alexandre Wahrhaftig, entra para a coleção de filmes que se põem a pensar sobre isso longe das reportagens de imagens aéreas, mas do lado de dentro, como Baronesa (2017), Arábia (2018) e O Sonho do Inútil (2021), por exemplo. Nesta mesma edição da 25ª Mostra de Tiradentes, os cearenses A Colônia, de Virgínia Pinho e Mozart Freire; e Curió, de Priscila Smiths e P.H. Diaz, também mapeiam às suas maneiras os conflitos de moradia e suas respectivas formas de “auto-resistência”, como se fossem pedaços invisíveis da cidade.
“A gente não existe, mas estamos aqui”, comenta um personagem quando mostra que a favela está no mapa. Pondo-se a escutar o estado dessa consciência coletiva, o documentário cruza olhares de passado e futuro sobre uma comunidade na zona oeste de São Paulo que foi devorada pelo assédio imbatível da especulação imobiliária, tendo sua geografia marcada diretamente pela destruição de moradias. No Google, Jardim Panorama é apresentado como um dos bairros nobres da capital – lado a lado com a favela, shoppings e complexos residenciais bilionários.
Discutindo essas condições civis, Panorama é principalmente um filme sobre a mutação e a persistência dessa visão de "cidade particular" em paralelo com a imaginação. Cidades, afinal, são inventadas, certo? Das poucas ferramentas que o filme tem, além de expor essa realidade por meio de conversas informais e passageiras, surgem também mapas oficiais e plantas desenhadas à mão para anunciar certo controle sobre o pertencimento daqueles espaços.
Ao longo dos pouco mais de 60 minutos, a maior parte das conversas são pautadas por essa visão da obra, do serviço, das casas – a construção, física e afetiva, não para. Nesse sentido, a montagem também funciona quando resgata imagens antigas para contrastar o apagamento institucional, apesar de ser também uma inserção breve dentro da perspectiva presente. Por isso, além dessa visão mais técnica de cidade, Alexandre também tenta construir, de forma muito discreta, a camada intelectual da cultura: esse universo de poesia, cinema e música é literalmente invadido, em dado momento, por um helicóptero vigilante que toma os sons daquele pedaço de cidade que para tantos “não existe”.
Esse constante ponto de observação, porém, também é responsável por estabilizar demais o desenvolvimento de sua conversa, fazendo com que o filme tenha seus vários momentos mornos e quase indiferentes, apesar de tudo o que discute ser tão urgente e mal resolvido. Diferente dos filmes citados no começo, Panorama é contraditoriamente o mais conformado com a crise, não num sentido de agir contra a denúncia, mas no de não estar interessado em qualquer outra proposta de linguagem, a não ser olhar e se contentar com a investigação possível. Apesar disso, logicamente, o “panorama” que faz do bairro, dos moradores, das memórias e das esperanças não deixa de ser justo e quase introdutório à partir das intenções declaradas.
Direção: Alexandre Leco Wahrhaftig
Roteiro: Miguel Ramos
Produção executiva: Bia Almeida
Direção de produção: João Pedro Bim
Produção: Gustavo Rosa de Moura, Carmem Maia
Fotografia: Alice Andrade Drummond
Mixagem: Daniel Turini
Som direto: Andressa Clain, André Bomfim
Edição de som: Felippe Schultz Mussel
Desenho de Som: Felippe Schultz Mussel
Montagem: Lia Kulakauskas
País: Brasil (SP)
Ano de Lançamento: 2022
Essa crítica faz parte da cobertura da
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