Arthur Gadelha
Diante da repressão cristã, ‘Medusa’ põe o exército da fé em ebulição
CRÍTICA Projetando a tragédia de um país ditado pela ordem moral, Anita Rocha da Silveira imagina a juventude como alvo e reação.
Diante de tudo o que estamos vivendo, acho que este é mesmo um grande filme. Olhando para a forma como o Brasil é hoje, e de onde ele veio, Anita Rocha da Silveira consegue construir algo assustador mesmo que seja - e assim queira - tão ridículo, tão óbvio, tão literal na composição da caricatura. Na trama que se perde nas próprias voltas, assim como todas as personagens, estamos vivendo numa realidade onde a “Lei de Deus” consegue ditar a violência de forma mais estrutural. Mas diferente de Divino Amor (2019), que se basta no absurdo, Medusa entende mais o lugar da piada como projeção das coisas que já existem.
Ainda na primeira sequência quando um grupo de garotas mascaradas peregrina numa rua escura atrás de seu alvo, é possível enxergar essa história como uma sequência de gravidade e sintoma ao seu primeiro filme Mate-me Por Favor (2015) - lá, porém, o grupo protagonista não pensa em matar, mas teme ser morto. A maior graça do cinema de horror da Anita, confirmado de maneira quase brutal neste novo capítulo, é a construção do “ser jovem” como um “ser sobrenatural”, que existe sempre numa gangorra entre responsabilidade e desejo, equação que pões suas adolescentes num estado de grande vulnerabilidade aos erros do mundo.
"Ela morreu, foi abduzida ou simplesmente se apaixonou por outra pessoa”, diz um personagem no seu curta Os Mortos-Vivos (2012) quando responde sobre o desaparecimento súbito de uma garota. Suas histórias são sempre permeadas por um tom desequilibrado entre medo e humor, balança que vem há muito tempo lhe entregando personalidade ao tratar de assuntos pautados por tensões urbanas. A cidade, afinal, é essa "instituição" onde é possível testar regimes de controle físico e ideológico, estejam eles na margem ou no centro, escondidos ou escancarados.
Em Medusa (2023), exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, mantêm-se o suspense de mulheres que lidam com o fato de estarem sozinhas, no escuro, com a constante sensação de que precisam se defender e, de alguma forma, tomar as rédeas: se no filme anterior era medo de um assassino solto pelas ruas cariocas, agora é medo do demônio, essa entidade do mal que está sempre à espreita e que por isso faz de qualquer lugar uma ameaça. Essas personagens fingem que estão livres mesmo sabendo que diante da religião e suas regras, estão aprisionadas. Mari Oliveira, na pele de Mariana, tem uma presença aterradora ao construir o caminho entre a hipnose divina e o retorno à realidade - rota de colisão que começa quando ela encontra o corpo de Melissa, uma mulher que teve seu rosto desfigurado por ser julgada “depravada”.
No longo desatar ideológico dessas garotas, Anita dá a imagem seu maior poder de articulação com a prisão, a ameaça e a violência. Como metáfora dessa realidade ignorada, a luz é rarefeita, teatral, como se suas personagens estivessem sempre encurraladas num corredor sem saída, ilhadas, acessando o mundo por vagos feixes de luz - nesse sentido, o recorrente neon verde surge como se revelasse o destino desse mesmo Brasil rumo ao autoritarismo fascista das religiões. É tudo muito grave, tenso e vazio. Depois das ruas, o hospital onde Mari consegue um emprego é o maior catalisador dessas sensações, pois lá repousam corpos em coma que “precisam ser salvos” na penumbra de uma noite que nunca termina. Os poucos funcionários, aqui acolá, dançam como fantasmas, o que deixa aquela existência ainda mais macabra.
Como também é comum na sua forma de contar histórias, a música e a trilha sonora invadem constantemente cada uma das dúvidas, dos medos e contradições, fazendo desse filme uma trama tão “pop” e elétrica quanto suas personagens, como se Anita estivesse filmando isso para pessoas daquela mesma idade e condição. O roteiro, a montagem, a arte e as próprias interpretações entendem que, apesar da previsibilidade, da repetição e do tanto que a gente ri, os amargos conflitos de Medusa e suas reações despetrificadas são profundamente reais: a manutenção civil de exércitos morais e repressivos como manobra de poder político, a vigilância do outro, a penalização do prazer e a culpa cristã. A resposta amedrontada ao pedido de casamento, assim como o caos que o momento gera e a seguinte libertação utópica, levam ao centro da discussão um pensamento que era imenso em 2021 (ano em que o filme ficou pronto) e continua como tal agora em 2023, mesmo que tanto tenha mudado: esse Brasil fundamentalista está só começando. É possível reagir?
Filme assistido na Mostra Retroexpectativa do Cinema do Dragão 2023
Direção e Roteiro: Anita Rocha da Silveira
Produção: Vania Catani
Direção de Fotografia: João Atala
Montagem: Marília Moraes
Som: Bernardo Uzeda, Evandro Lima, Gustavo Loureiro
Desenho de Produção: Dina Salem Levy
Música: Bernardo Uzeda, Anita Rocha da Silveira
Elenco: Mari Oliveira, Lara Tremourox,
Felipe Frazão, Joana Medeiros, Thiago Fragoso
Commenti