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  • Foto do escritorArthur Gadelha

No delírio do futuro, ‘Medo do Escuro’ encontra uma ilusão de cidade

Em exibição exclusiva na mostra "Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares", filme de Ivo Lopes Araújo é ainda mais angustiante se visto desse lado de cá do tempo

Em relato publicado este mês para o Jornal O Povo sobre a memória de Fortaleza, a bailarina Silvia Moura olhou para a Praça José de Alencar e lembrou de quando, há muito tempo, ela morou no Lord Hotel, espaço localizado ao lado do Theatro José de Alencar, o mais antigo do Estado e que outrora viveu período de glamour ao centralizar a experiência cultural da cidade. Nas gravações dessa reportagem, o hotel já estava entregue às ruínas, destruído, testemunha de uma cidade que se transformou tanto sob sua imponência e que viu as ruas tomarem sua memória imagética. O Centro da cidade, trânsito interminável, os barulhos de uma civilização.


É esse mesmo hotel, em mesmo estado de decomposição, que surge nos primeiros planos de Medo do Escuro, ficção-performance de Ivo Lopes Araújo exibido pela primeira vez com trilha sonora ao vivo em 2015. Ao olhar para os escombros, a intenção dessa história é talvez a mesma que viajou na memória de Silvia, mas com certeza sem a mesma esperança de que isso signifique algo além do caos, que exista um "depois". Silvia fala sobre uma cidade que ainda existe. Ivo sobre uma cidade que já acabou.


Quando Pedro Azevedo, curador dessa seção na mostra, enxerga nas ranhuras dos filmes um Brasil levado ao apocalipse político pós-ruptura democrática em curso nesta mesma década, está também olhando para como as engrenagens responsáveis por todas essas violências fazem parte do que já define o próprio conceito de uma "cidade em desenvolvimento". Se já era insuportável para Linz, do filme de Alexandre Veras, ser desaparecido pelas dunas (quem poderia culpar o vento?), pense na angústia da Deusimar de Inferninho (2018) que precisa "fugir da própria cidade", ou esse cara e garota de Medo do Escuro que são engolidos por algo nada natural: os rastros de uma civilização que partiu.



Faz sentido, portanto, que essa peregrinação seja tão incômoda, tão suja, tão desesperadora quanto a trilha sonora distorcida - único elemento responsável por mediar essa realidade com a nossa experiência de espectador. Não há falas audíveis, e é como se nem o filme pertencesse ao que conta, como se apenas olhasse, lamentasse, se desesperasse. Superando seu contexto de forma talvez desonesta, o ato de assistir a esse filme durante uma pandemia ganha outro significado de ausência porque se presumirmos que estamos mesmo todos ilhados, a cidade lá fora se torna esse mesmo caos amargo. Se olharmos para esse Brasil, porém, e vermos exatamente onde chegamos depois de tantas décadas pós-2014, é a cidade que se ilha. Não tem mais saída. Tá tudo acabando.


A Fortaleza de Silvia ainda existe e, definitivamente, não é a mesma solitária que brilha na tela de Ivo. É uma cidade suspensa de desigualdades veladas, de pajeús soterrados, de omissões tão pífias quanto violentas. É claro que todo conceito de cidade é superado por tudo aquilo que não lhe é físico, por toda a matéria etérea que lhe compõe, como as memórias, os amores, as sensações de uma brisa, os encontros de uma praça. Mas desse lado de cá do tempo, esse que Medo do Escuro te faz lembrar que ainda existe, a destruição é inegociável. Ela vai acontecer. É por isso que a dança final de Jonnata Doll é tão significativa - é na insistência do movimento, da loucura, do ímpeto de se fazer existir que as coisas realmente "permanecem".

 

Eleito como um dos 20 filmes cearenses essenciais da década 2010 pela Associação Cearense de Críticos de Cinema, é especialmente admirável perceber o quão "essencial" é também sua estética para se pensar os rumos de um cinema cearense - e consequentemente brasileiro independente - que se faz pensar num futuro cuja comunicação superou a própria humanidade e até mesmo o cinema como o são hoje.

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