Arthur Gadelha
Aceccine: "Janaína Overdrive" e um futuro que não merecemos
Esse texto foi publicado originalmente na 1ª Mostra Aceccine da Associação Cearense de Críticos de Cinema
No 26º Cine Ceará, minha estreia como júri em um grande festival de cinema, não me parecia haver filme mais potente naquela edição do que Janaína Overdrive, de Mozart Freire. Dentre os curtas e longas daquelas sedutoras noites de cinema, era a obra mais visceral e surpreendente, sobretudo por ser um filme universitário que narrava a saga de uma ciborgue trans buscando se libertar da corporação que tinha domínio sobre seu corpo. Era o futuro labiríntico de William Gibson, Philip K. Dick e das irmãs Lilly e Lana Wachowski que havia pousado ali naquele cineteatro para contar que o poder financeiro e neoliberal (por não ter rosto) sobre as privações da liberdade podada em sociedade caminhava para existir na eternidade do tempo. Nosso futuro não merecia ser assim. Era uma ficção científica triste. Ao fim do festival, descobri que todos do júri universitário tinham sentido o mesmo e, não à toa, foi nossa única premiação unânime.
Em seu filme anterior, Cinemão (2015), Mozart se aproxima também do contexto das existências que vivem para além do controle social ao ficcionar uma noite de desejos explosivos dentro de um cinema pornô. Mas se nesse há o medo e o esconderijo, em ‘Janaína’ há a imposição da sobrevivência em busca de um mundo digital de aparência desamarrada. A sequência da festa conversa sobre essa sensação ante um obcecado som eletrônico que explode a energia das pessoas humano-robóticas desse tempo. Para alcançar a ilusão da liberdade, a realidade é que se tornou o próprio esconderijo. Nesse futuro de Mozart, não existe mais o “lá fora”, mas apenas o hipercontrole. Por aqui, nesse nosso 2020 virtual em plena quarentena, as coisas não parecem tão diferentes – Byung Chul-Han precisa muito assistir a esse filme.
Na pele de Layla Kayã Sah, Janaína se transforma nessa personagem que já não responde aos estímulos que lhe foram programados e cansou de atender à única função que sua biomáquina era destinada. Se não era possível fugir de uma reciclagem de seu corpo para ampliar a demanda de serviço, apenas o caminho de uma existência cibernética parecia a solução. Sua determinação na busca desse upload final é o que nos guia na aventura soturna que é, ao mesmo tempo, uma fuga do controle dessa corporação, personagem representado pelo saudoso Euzébio Zloccowick.
No mesmo ano dessa edição do Cine Ceará, fui admitido na Associação Cearense de Críticos de Cinema e participei da primeira votação de Melhores Filmes do Ano da entidade recém-nascida. Lá estava Janaína Overdrive novamente, vencendo a premiação de Melhor Curta-Metragem Cearense. Mozart Freire e sua história apocalíptica, concebida numa escola pública de artes, marcaram de um modo muito especial a filmografia cearense de 2016. Não tinha como passar batido por ninguém.
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