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  • Foto do escritorArthur Gadelha

HBO: "Years and Years" enfrenta o futuro dos vilões que não dão a cara

ENSAIO Uma história sobre como vamos destruir o mundo

Angela Merkel morre e Donald Trump se reelege no primeiro episódio de Years and Years, minissérie produzida em parceria pela BBC One e HBO. Assusta porque salta no tempo e se passam muitos anos no futuro enquanto tudo muda. Diferente de Bacurau que indetermina seu tempo para falar do presente, Years and Years diz precisamente em que ano estamos, muito porque seu discurso se expande sobre a urgência de um mundo cada vez mais digital e perdido politicamente. É sobre agora que estamos falando, não 2038. Em seu último episódio, a matriarca Muriel (transformada com carinho por Anne Reid) revela num monólogo que é nossa a culpa de tudo que acontece lá em cima, no escondido mundo da política que, até pouco tempo atrás, renegávamos.

Em apenas seis episódios, a minissérie criada por Russell T. Davies acompanha a família britânica Lyons atravessando longos 15 anos de transformações na configuração geopolítica do mundo. Mas o que a torna especial é que essa não é uma história sobre o mundo político, mas sobre o povo que o pertence. Diferente de House of Cards ou Designator Survivor, Years and Years conta a história do lado de cá, das nossas vidas que ao mesmo tempo gerem e são afetadas por esse líderes do sistema. Como Stephen, que perdeu um milhão de libras do dia para a noite porque os bancos quebraram e o governo não teve interesse de interferir e, "hoje", trabalha em 11 empregos, à parte de sua especialização profissional, gerados pela experiência neoliberal de um mundo "operário".

É curioso assistir a evolução dessa história sendo brasileiro, porque muito do que é dito e percebido por seus personagens parece estar sendo dito sobre nós, deixando claro que essa "crise intelectual" está infectada nas novas estruturas de uma democracia que rui diante do mundo. Emma Thompson surge numa TV como Viv Rock, uma peça de contra-política que adere fãs por parecer como eles e, precisamente, não entender muito do sistema político. "O que Viv Rock realmente faz? O que o seu partido realmente quer?". Em um precioso momento de seu penúltimo episódio, os olhos se esticam sobre a tela porque Thompson finalmente surge diante de nós, e de Stephen, que descobre algo sobre o seu poder. Os vilões não são os que dão a cara, ou você acha mesmo que é Bolsonaro que comanda o Brasil? - Eu iria se pudesse. Num barco para bem longe disso. Rumo ao horizonte, e sumiria. Imagine se eu fosse... - A primeira-ministra pode fazer o que quiser - Eles me matariam - Quem? - Eles mandariam me matar

É o poder e sua experiência sensorial que guiam os rumos dessa história que salta no tempo sem muito apego aos impactos dramáticos que causa, porque lhe importa mais falar sobre as reações da família Lyons como pedaço desse mesmo mundo. Tudo acontece ao mesmo tempo, pois é a tecnologia que sufoca nossa sensação humana ao mesmo tempo que o campo progressista tenta se aproveitar para emplacar uma sociedade livre de estereótipos ou extensos preconceitos. Se não há mais homofobia ou racismo na Inglaterra de Russell T. Davies, há um mundo que não consegue resolver a superpopulação, como lidar com as distinções de liberdade dos países, administrar seu poderio militar, as ofensivas de guerra, conter a violência. O mundo não vai ser salvo por ninguém lá de cima.

Por isso é interessante o contexto da migração para os personagens de Daniel e Viktor, com destaque para a interpretação emocionante de Russell Tovey. O plot de um europeu apaixonado por um refugiado surpreende ao encontrar alguns discursos pelo caminho, porque para além do amor, há a busca pela justiça social que nunca se completa por maior que seja a intervenção pelas margens desse poder invisível.

Aos poucos, inclusive, a família Lyons vai provando da crueldade desse poder. Stephen chega a usurpá-lo sem a consciência direta disso, Bethany experimenta a vigilância digital que lhe apoia, Celeste se torna um número no índice de desempregados necessários à sua manutenção, Edith tenta ser um vírus no sistema, Daniel vira vítima apesar de todos os privilégios, enquanto a Muriel, que ao fim denuncia o desespero do futuro, resta assistir silenciada.

Com tanta vontade de trançar um contexto mundial aos dramas de uma família qualquer, há certo exagero nas suas elipses, especialmente mais perto do final, que serve para que algumas sensações permaneçam ao fim da curta e exaustiva jornada. Years and Years monta uma teia de acontecimentos que caminham juntos, mesclando muitas sensações sem qualquer interesse em sua digestão imediata. A história de um mundo enlouquecendo, de repente, torna-se uma distopia sobre um mundo sem saídas palpáveis para além do horror que é ser humano.

Vislumbrando um futuro que se resolve muito longe daqui, o mundo na tela parece tal qual pensou o filósofo Gilles Deleuze, ao perceber que, enganados pelo próprio sistema, nossa única saída é esquecer que há algo lá fora e fugir para dentro enquanto fingirmos ser livres para existir.

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