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Foto do escritorAbdiel Anselmo

Hayao Miyazaki, infinito

ABDIEL ANSELMO O diálogo do mestre e seus fantasmas na animação "O Menino e a Garça" e no documentário "Hayao Miyazaki e a Garça"



17 de Fevereiro de 2024. Fortaleza, Cineteatro São Luiz em um sábado quase à noite.


Uma cidade sombria, assustadora, cheia de mistérios e fendas onde se escondem as criaturas mágicas e assustadoras que povoam O menino e a garça, encerramento de uma das mais antigas fantasias do mundo da animação, a alma perene de ideias de Hayao Miyazaki.


Acompanhamos o luto de Mahito após a morte de sua mãe. O jovem realiza uma viagem para o interior do Japão, tal qual o próprio diretor fez em sua infância para fugir da guerra. Lá ele encontra uma garça que o persegue e convoca a entrar em uma torre mágica.


A paisagem bucólica que é construída na primeira metade do filme traz uma beleza mórbida que esconde segredos e passagem secretas para o desconhecido. Há um tom que se assemelha ao Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo Del Toro, quando observamos um mundo flagelado pela guerra aos olhos de Ofélia, uma garota que acredita em contos de fadas.


Mahito é atormentado por uma garça que quer lhe tirar de uma realidade a qual ele precisa enfrentar: seu pai agora está construindo um novo relacionamento com Natsuko, a irmã de sua mãe que está grávida. Somente quando Natsuko desaparece, Mahito aceita seu chamado para a aventura. A jornada entre O Menino e a Garça pode ser percebida como uma história de superação de traumas, aprendizado e amadurecimento, mas isto é mera superfície.


O filme entrega a essência da obra do cineasta japonês: contemplação e existencialismo em um mundo em que a realidade e a ficção são um imbróglio conectado pelo desejo de encontrar no próprio íntimo as respostas para todas as relações que experienciamos na natureza.


Parte dos personagens desse mundo mágico e assustador, periquitos australianos e pelicanos, criaturas do nosso mundo que retiradas de seus habitats e na busca pela sobrevivência, tornam-se criaturas maléficas. Há todo um clima de horror nesse mundo fantástico, mas também há humor. Todo o plot dos periquitos australianos têm uma graça peculiar. Esse novo mundo também é cheio de fantasmas perdidos e criaturas pequeninas que ainda nem nasceram.


Apesar das criaturas fantásticas, o que guia Mahito é a promessa feita pela garça de que sua mãe não estaria morta e sua vontade de resgatar (perdoar) Natsuko que está trancada na maternidade (tanto um lugar real na narrativa como metafórico). Os traumas da guerra, sua herança enquanto artista e a relação com sua própria obra são examinadas e encerradas com uma direção que domina cada recurso possível.


O Menino e a Garça me obriga a rever todos o caminho que a Miyazaki fez até aqui, certamente muitas outras fissuras levarão a tantos outros mundos oníricos, cada um refletindo sobre a essência destrutiva da nossa espécie, apaixonada pela a eterna contradição de que morrer e viver não encerram significados.



27 de Dezembro de 2024. Fortaleza, em um bairro da periferia.


Na noite de sexta-feira. Uma nova leitura sobre uma das obras que mais me impactou esse ano, dessa vez sobre uma ótica documental. Hayao Miyazaki e a Garça (2024) é mais uma crônica documental sobre os processos de criação do famoso diretor nipônico assinada por de Kaku Arakawa, mesmo documentarista que fez Never-Ending Man: Hayao Miyazaki (2016), filme que relata o despertar da decisão de Hayao Miyazaki de se “aposentar”. 


Hayao Miyazaki e a Garça de cara introduz o diretor numa postura completamente relaxada, tomando um banho em águas termais, nu e acompanhado de seu produtor Toshio Suzuki. O retrato perfeito de dois velhinhos aposentados. Isso logo é interrompido por uma insônia que lhe aflige, ele nos relata que fecha os olhos mas não vê imagens, apenas fragmentos de um filme numa névoa sombria que de alguma forma ele é capaz de conectar as partes. Miyazaki questiona a própria sanidade o tempo todo. 


Com uma montagem que emula um fluxo de consciência (mas comportadinha), transitamos entre diversas imagens de filmes anteriores do diretor, paisagens de seu cotidiano, sua rotina no trabalho, sua conexão com as crianças da vizinhança. Contudo, é no diálogo com os fantasmas que nos atentamos mais profundamente. Principalmente de Isao Takahata, diretor dos filmes Túmulo dos Vagalumes (1988) e o O Conto da Princesa Kaguya (2013), que faleceu em 2018. Em vários momentos do documentário, Miyazaki relembra a figura de Takahata como um mentor e um colega, uma relação de amor e ódio. O realizador afirma em alguns momentos que foram suas manifestações fantasmagóricas em seu inconsciente e nas tempestades que o impeliram a não se aposentar. 


O documentário nos faz compreender que os diversos símbolos criados em O Menino e a Garça são seus registros poéticos e fabulares de seus próprios colegas que pouco a pouco partiram, são também suas inquietações enquanto artista que se sente um tanto deslocado do tempo presente, sempre preocupado com o final de sua vida, tentando de alguma forma prever o seu fim. Mas a vida não o arremata. 


Ao final do documentário, Miyazaki confessa ter ido longe demais na produção de O Menino e a Garça, aberto demais sua cabeça. Ele decide então não se aposentar. Ouso dizer que mesmo enquanto fantasma, ele ainda nos apresentará suas fantasias. Nos resta desfrutar dessa arte que o faz persistir em dar alma à própria existência.

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