Arthur Gadelha
Filmes querem lhe enganar, não esqueça disso
ENSAIO "Ford vs Ferrari", de James Mangold, é essencialmente um filme de guerra. Mesmo
Este texto não bem uma crítica, mas uma ponderação sobre o cinema enquanto uma ferramenta de afirmação. Podemos supor que o que leva uma equipe a gastar quase 100 milhões de dólares para contar uma história é principalmente acreditar nela. Veja só, por que filmes de guerra são feitos? Além do deslumbre de se tornar consumível uma realidade tão distante do conforto de uma sala com ar-condicionado, há a emoção de se converter emoções específicas. Sentado em seu ato solitário, o roteirista é capaz de imaginar as reações possíveis de diferentes plateias quando escreve um diálogo ou descreve a forma como um personagem se comporta
Digo isso porque Ford vs Ferrari, de James Mangold, é essencialmente um filme de guerra. Mesmo. Aqui é EUA contra Itália que disputam o ego de uma vitória milionária no universo da velocidade. Ainda no início, o personagem vivido por John Bernthal pergunta se seu cliente sentisse que além de um Ford, estivesse comprando também uma vitória. Interessante, um discurso de marketing facilmente aplicável a um conflito armado: e se os norte-americanos acreditassem que cada guerra administrada pelo presidente significasse uma preocupação com o bem-estar do mundo?
Enzo Ferrari assume primariamente o papel do vilão: aparece sempre com cara de que está pronto para agressão, expressa-se com arrogância e não se comunica diretamente, visto que o filme define quais falas são precisas legendar. Do lado de cá, Carroll Shelby e Henry Ford II inflamam seus discursos de que são dois dos poucos homens que nasceram sabendo o que fariam de suas vidas. A guerra, vencida a duras penas e pressão extrema, é tanto contra a arrogância da outra língua quanto uma afirmação do próprio poder.
Ficções são muito mais documentários do que os que assim se autodenominam, já que registram a intenção em sua camada mais honesta. Para além do texto, quem diz isso é a luz do pôr-do-sol que Ken Miles admira com o filho, a trilha sonora de Marco Beltrami e Buck Sanders que pausa no momento certo para acompanhar o arrependimento de Ken ao perceber que está sozinho na pista, a montagem que intercala o som dos motores com uma precisão muito bonita.
Nessa perspectiva, é interessante que os roteiristas Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller reconheçam que essa história, no entanto, tenha a intenção de apenas partir dessa guerra macro porque, aparentemente, é o que vende melhor (veja o título). Durante seus longos 150 minutos essa aversão vai se diluindo para que se torne um filme sobre amizade – tanto que ao fim, o que incomoda o espectador não é mais o objetivo que já foi alcançado, mas a guerra nada corporativa entre Shelby e Leo Beebe, diretor do comitê de corridas da Ford. Esse homem de terno toma para si o papel do vilão diante do pobre piloto que precisa pagar as contas da família. É apostando nessa quebra que a história resolve estrategicamente terminar onde termina.
E tá tudo bem, porque filmes são assim. Talvez isso fique mais claro em filmes como 1917 ou Parasita, mas tudo numa obra é emulado para causar uma reação. O texto, o choro, a ação, a risada, a velocidade, o tom, o tema – tudo, absolutamente tudo, é estético. Foi assim que nos acostumamos a acessar essa linguagem de planos e sequências que salta no tempo sem parecer absurda. Afinal, filmes são feitos para lhe enganar. Não esqueça disso.
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