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Foto do escritorArthur Gadelha

Entre cinema, teatro e literatura: Wes Anderson numa overdose Roald Dahl

ENSAIO No cinema e no streaming, um mês para redescoberta de um dos diretores mais extravagantes dos EUA

Quando saí da sessão de Asteroid City (2023), me dei conta que aquele era o primeiro filme do Wes Anderson que eu havia assistido numa sala de cinema – o que era, em si, algo curioso dado meu apreço por sua filmografia já que O Grande Hotel Budapeste (2013) entrou no hall dos filmes inesquecíveis da minha experiência inicial com o cinema ali por volta dos 17 anos de idade. Quase 10 anos depois de conhecê-lo, esse inesperado-ineditismo da sala explicou imediatamente minha reação de graça constante, eu não conseguindo tirar o riso do rosto por um segundo sequer dos seus 105 minutos.


Visto numa tela grande tudo o que ele filma parece insistentemente hilário, dos atores e objetos em movimento a placas e cenários estáticos. Até frases bobas como “uma ponte cuja construção foi interditada por erro de cálculo” ganha o frescor de uma brincadeira levada à sério. Na introdução do filme, somos apresentados à uma cidade marcada pelo impacto de um meteoro que atrai turistas e experimentos científicos, e é tudo visto como estamos acostumados – parecem brinquedos e bonecos que se movimentam numa maquete, mas que, apesar disso, nunca são alcançados por qualquer humor.


Ao contrário dos sintomas caricatos com que são observados, estão todos mergulhados em tensão, sem sorriso ou leveza, contradição que nos lembra aquelas irritantes ilusões de ótica que parecem se mexer mesmo sendo imóveis. É uma subversão da realidade tão consciente e distante da verossimilhança que quando vista assim com tanta formalidade numa sala de cinema, parece algo genuinamente engraçado.


Pode parecer que estou falando de forma antes do conteúdo, mas como conhecemos Anderson, esses não são elementos distintos, mas fatores que precisam operar em conjunto: a história, as narrações, os personagens e as falas atendem ao esquematismo de sua ficção. A rigidez das interações de Scarlet Johansson e Jason Schwartzman é um bom exemplo, cada um ensimesmado com suas angústias incontornáveis, assim como, de repente, descolamos do live action para o deslumbre de um stop motion.


Inclusive, neste momento do contato extraterreste, lembro que a sala fez um silêncio sepulcral de tão tenso e envolvido que todo mundo estava. Quando o personagem em questão surge, tão cartunesco e arregalado, fui acometido por um sentimento misto de surpresa e alegria que me levou a gargalhar, destravando os que estavam nas filas atrás a fazer o mesmo. O cinema do Wes Anderson está cada vez mais entre a forma e o conteúdo, na beleza da “fabricação”.



Na última semana de setembro, a Netflix lançou quatro filmes inéditos do diretor baseados em contos do Roald Dahl, autor que já tinha o inspirado para o belíssimo O Fantástico Sr. Raposo (2009). São eles: “A Incrível História de Henry Sugar”, engenhosamente finalizado no formato de média-metragem com 40 minutos, seguidos pelos curtas “O Cisne”, “Veneno” e “O Caçador de Ratos”. Coincidentemente, também assisti Asteroid City em setembro, o que fez do mês quase uma ode à sua criação, na overdose de filmes que se comunicam tanto com linguagens para além do cinema.


Se Asteroid frontaliza a invenção do teatro, criando histórias paralelas com os atores de seus personagens que caminham entre palco e cenário, o média e os curtas parecem fazer o mesmo com a adição religiosa da literatura. Os textos do famoso escritor britânico são lidos quase que na integra pelos próprios personagens, às vezes terceirizando a função ou interrompendo o próprio ato da atuação para se comunicar diretamente com o leitor/espectador.


É como assistir a um filme e ler um livro ao mesmo tempo, tarefa aparentemente fadada ao tédio, mas revitalizada pela graça do estilo. E o teatro permanece com os cenários sendo alternados em tempo real, além dos assistentes cênicos serem incorporados à própria narrativa. Claro que essa artimanha às vezes se torna exaustiva, o que explicaria a Netflix não ter lançado esses quatro filmes como um longa-metragem à espelho do que foi feito com A Crônica Francesa (2021), em que a irreverência de algumas histórias se sobrepõem a outras mais repetitivas. Nesse leque de contos, a história do Cisne é esvaziada, apesar de envolvente, mas é a única que sobra na sensação de exagero.



Os astros Benedict Cumberbatch, Dev Patel e Ben Kingsley brilham nessa bagunça com as histórias de Henry Sugar, que aprendeu a enxergar sem os olhos, e de Harry, que está imóvel na espera de que uma cobra lhe morda. O tom de interpretação e humor é tão próximo nos dois filmes, encontrando sempre no absurdo seu maior trunfo. Como um acomodado narrador em todas as histórias e como um homem-roedor no inebriante “O Caçador de Ratos”, Ralph Fiennes também merece destaque.


Passados quase 30 anos desde que Wes Anderson começou a fazer cinema, ser apresentado a mais de 10 filmes na última década – sendo quatro deles no mesmo ano –, parece constatar que sua filmografia sobrevive de um impulso muito próprio que ainda tem muito a dizer e nos fazer refletir sobre quais os significados do cinema para além da realidade e da representação, na sua intrínseca relação com as outras formas simbólicas que o precederam no contar-histórias.

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