27ª É Tudo Verdade larga de dentro com “A História do Olhar”
- Arthur Gadelha
- 1 de abr. de 2022
- 2 min de leitura
ENSAIO Tradicional festival de documentários estreou sua programação com um documentário que, na intimidade, tenta se sobrepor às experiências enclausuradas

Sobre a estreia do 27ª É Tudo Verdade com A História do Olhar (2021), de Mark Cousins, paira um certo deja vú, lembrando a abertura do 10ª Olhar de Cinema com O Dia da Posse, de Allan Ribeiro. O paralelo difere nos dispositivos, mas se aproxima no "desafio" de se fazer cinema quando as possibilidade de coisas para se olhar, e contar, estão limitadas. No brasileiro, um casal que sobrevive à quarentena instalada no Brasil pela pandemia da Covid-19, e no irlandês, uma tensão mais íntima sobre o próprio intuito de olhar, gravar e lembrar das coisas. Da sua cama, prestes a fazer uma delicada cirurgia nos olhos, Cousins reinterpreta sua natureza cineasta: "É como se eu estivesse puxando de trás da cabeça, como se estivesse projetando", comenta de olhos fechados sobre o que enxerga na escuridão.
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Na mesma medida em que é modesto, esse gesto do diretor e da curadoria soa complexo diante de tudo o que está acontecendo no mundo. De guerras e suas narrativas hegemônicas na mídia tradicional a crise políticas e empatias seletivas, o culto à ferramenta do "olhar", para onde, de que forma, o quê e como registrá-lo, se torna uma discussão infinita. A jornada de Cousins não diz nada disso diretamente e o mundo, em si, não é um conflito tão urgente, mas suas memórias e a forma como ele mesmo se enxerga nos leva a pensamentos imprevisíveis.
Claro, tudo poderia soar muito engasgado, egocêntrico ou repetitivo - e até o é em certa medida, inevitavelmente -, mas a cadência na condução do seu pensamento causa uma impressão honesta à partir de sua própria solidão e das imagens que busca em si e em filmes alheios. "Será que eu já toque o rosto da minha mãe?", pergunta enquanto vemos o prólogo de Persona (1966), do Bergman. O "olho", nas suas mãos, é observado como uma ferramenta, assim como os celulares e as próprias câmeras, mas com a irreverência do instante - afinal, o que vemos não se guarda, depois que acontece, já se foi, vira a ficção da memória. A foto da avó morta, perdida no telefone que apagou, é a extensão desse paralelo improvável: os olhos que vagam e os que gravam, todos têm um fim.
Num exercício narrativo de auto exibição, A História do Olhar reconhece que a limitação faz dele um projeto de descobertas mais pessoais do que qualquer "projeção" externa, mas nunca deixa de ser uma viagem curiosa. A tensão em torno da literal cura da visão, que já seria empolgante em qualquer contexto, torna-se ainda mais alegórica estando na abertura de um festival como esse, tão disposto a nos revelar pessoas, lugares e suas histórias. Bela largada.
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