Arthur Gadelha
31º Cine Ceará: da Tailândia ao sertão, invenções na pandemia
ENSAIO ◉ Os curtas O Durião Proibido (PE) e Foi Um Tempo de Poesia (CE) se colocam como observadores de um impulso nativo ao próprio cinema
Por uma ironia imprevisível, talvez já estejamos cansados dessa camada superficial de "filme de quarentena", porque vimos à exaustão histórias narradas de forma tão solitária e monótona - se funciona numa perspectiva contextual, aos poucos vai cansando à medida em que estaciona ao encarar o dispositivo como encerrado. A partir dos editais advindos da Lei Aldir Blanc, por exemplo, foram vários os curtas-metragens, interessantes ou não, gravados de casa com pouco a mostrar e muito a dizer.
Nesse emaranhado de possibilidades reduzidas, porém, sobressaem-se as histórias que ou fabulam as próprias existências ou olham com cuidado para as memórias. A Gente Acaba Aqui, de Everlane Moraes, faz imagens antigas voltarem como contemporâneas na melancolia de um tempo mórbido; República, de Grace Passô, reimagina um Brasil no poder imperativo da fala; O Dia da Posse, de Allan Ribeiro, brinca com a ficção - esses, como tantos outros, se movimentam na exposição de uma vulnerabilidade explícita de forma e conteúdo, sintonizados com essas discussões comuns à todos nós aprisionados e inquietos.
RELEMBRE
No 31º Cine Ceará, dois exemplos comoventes dessa imersão foram apresentados na noite de ontem, 28 de novembro, um domingo já recheado de natal por todos os lados. No palco do Cineteatro São Luiz, os cineastas Txai Ferraz e Petrus Cariry se aproximaram em mensagem quando apresentarem a si e suas obras - se ambos lidam com imagens produzidas no passado para proporcionar pensamentos de agora, por outro lado os filmes não poderiam ser mais diferentes.
Em O Durião Proibido, as imagens são construídas em quatro telas: a que as captou, a que as reproduziu no notebook, a que as re-filmou pelo celular e a que as exibiu para nós no cinema. Se essas camadas soam exageradas na proposta de clausura e imaginação, elas também materializam uma distância imensa entre o autor e sua história, separados por outros mundos além daqueles que a gente vê. Na narração do cineasta, em outro país, apaixonado por uma pessoa estrangeira de língua e cultura, tudo o que vemos são divagações espaciais, como se Txai estivesse propondo muito mais um olhar sobre essa sensação de pertencer aos lugares e às pessoas, do que um mero anúncio desse tesão passageiro. Como não chegamos a ver esses dois frontalmente, no "presente", o que vemos é passado - com exceção de um reflexo do celular na tela do computador, as imagens se reciclam nessa experiência interessante, justamente, por acontecer de forma tão isolada. De seu quarto, Txai caminha pelo Google Street View, reproduz vídeos do YouTube e dá zoom em antigas fotos suas.
Em Foi Um Tempo de Poesia, primeiro filme que Petrus apresenta nessa edição, é certo que a estética seja convencional e comedida: tendo como objeto central uma sequência de vídeos e recitações de Patativa do Assaré, Petrus, seu afilhado, olha novamente para dar forma à essas imagens tão raras de uma rotina sertaneja. "Ainda não tinha visto seus olhos", anuncia o diretor no momento em que seu filme revela o rosto do padrinho sem os clássicos óculos escuros. Em menos de 15 minutos, a narração de tom uniforme lembra bastante a que o autor já havia feito no curta A Montanha Mágica (2009), uma história também de memórias narradas. Apesar da pessoalidade e de um formato tradicional, o filme convence pela fabulação de Petrus sobre sua própria história. No desfecho, a eletrizante trilha original de João Victor Barroso dá um pontapé final na emoção que estava engatada.
Mesmo diferentes em estrutura, objetivo e reflexão, O Durião Proibido e Foi Um Tempo de Poesia são histórias que, apesar de suas comodidades, surgem no contexto recluso da pandemia e reforçam um impulso nativo ao próprio cinema enquanto manifestação pessoal e transferível; afinal, quando chegam até nós, todos esses sons e imagens são objetos já acontecidos e fatalmente inventados.
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