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  • Foto do escritorArthur Gadelha

No luto pessoal, a gravidade da família em ‘5 Casas’ e ‘Bosco’

ENSAIO Exibidos na Mostra Ibero-americana do 31º Cine Ceará, filmes distintos se oferecem à discussão

Cena de "Bosco"

Desde que passou a ser mais “possível” apontar a câmera para histórias sem temores acerca de sua duração, especialmente pela infinidade do cinema digital, a tendência foi inevitavelmente conduzida às narrativas pessoais – pois se já seriam articuladas de forma caseira, experimental, por que não as levar ao cinema para estranhos? Para além de nomes como Petra Costa (Elena) e Arthur Leite (Abissal), foram muitas as histórias alheias que nos emocionaram nesses últimos 10 anos como se fôssemos nós ali na tela, gesto que escancara a lógica do cinema enquanto um objeto de alteridade.


Mas nessa de cineastas entrarem na áurea introspectiva para nos contar sobre seus pais, avós e tios, o dispositivo entrou em looping, encontrando por vezes a mera imersão egóica comum ao simples ato de se pôr como personagem no próprio filme – é o preço a se pagar, muitas vezes, porque até o ensimesmamento (termo que achava ser mero neologismo) tem seus méritos quando a intenção do autor extrapola para criar sentidos imprevisíveis. No 31º Cine Ceará, dois documentários da mostra ibero-americana dialogam nessa discussão tanto para dialogá-la quanto para a reafirmar: 5 Casas (2020), produção brasileira de Bruno Gularte Barreto, e Bosco (2020), dirigido pela uruguaia Alicia Cano Menoni.


No brasileiro há uma contradição que me deixou inquieto ao longo de toda a projeção. Ao mesmo tempo em que o motivo do filme é honesto na abordagem não-convencional do luto, há um desenvolvimento muito circular na forma como a memória de sua mãe chega através dessas cinco casas. A condução do relato vai se engessando sem perceber – ao que indica, pela incontornável relação ativa de seu autor. Apesar dessa constante sensação, 5 Casas nunca se torna um filme chato ou cansativo (motivo da contradição) em razão do minucioso trabalho de fotografia, som e até mesmo de arte, como bem lembrou a crítica Maria do Rosário Caetano.


Diante dessas histórias que são suas, Bruno faz delas impulso para uma espécie de redescoberta daquelas imagens, então as impressões/projeções das fotos e as pequenas ficções ganham essa imersão sensorial, já não importando propriamente se a história original ainda nos interessa. Ou seja, esse ainda é um exemplo dos tais ensimesmamentos que oscilam na corda bamba: ou impressionam seu espectador, talvez na empatia de identificações particulares, ou o escanteiam de forma passiva.


Cena de "5 Casas"

Em Bosco, Alicia foge de todas essas questões sempre que pode, ação que dá ao seu filme tanto uma ternura inesperada na forma como as personagens compõem o quadro, quanto a possibilidade de indiferença – e assim como em 5 Casas, que define é quem assiste. Motivada pelo avô, Alicia viaja do Uruguai a Itália para se reencontrar com um "pedaço" da família que está em outro continente, em Bosco, cidadezinha com população mínima.


Distante do que Bruno faz, Alicia está indo atrás de uma história que é alheia também a ela, apesar dos elos anunciados. Então olhar para essa realidade, com certa melancolia e humor inesperados, é o “grande” objetivo de uma história tão mínima quanto as pessoas que vivem ali. “O que é casa?”. pergunta a diretora para uma dupla de senhoras muito íntimas da câmera, ao que elas respondem se contradizendo nos sentidos literais e figurativos: "É um imóvel, ou não é?”, se perguntam entre risadas. Silenciosamente, Alicia compõe um filme em que suas personagens e paisagens preenchem a tela com muita graça.


Em dado momento, uma senhora acaricia uma rã atenciosamente, noutro observa uma mosca pousada sobre sua mão; o tempo em Bosco é filmado sem cerimônia, na crença de que olhar é o gesto suficiente para homenagear a busca sua e de seu avô, que nunca foi até lá. No desfecho, apesar de também pairar uma vaga indiferença – e por uma repetição que lembra o experimento narrativo do Bruno –, a viagem se justifica à medida em que todas as descobertas fazem sentido na surpresa.


Preenchendo a tela imensa do Cineteatro São Luiz de emoções íntimas, Bosco e 5 Casas não são títulos que propõem novos rumos para essa estética do documentário pessoalizado, mas alimentam uma discussão que acontece do lado de cá, nas nossas expectativas diante do envolvimento com lembranças que não são nossas - ou são?

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