‘Moonage Daydream’ tenta desvendar o que é David Bowie
CRÍTICA Para entrar no universo do artista, Brett Morgan esquece a realidade
Quando as estrelas brilham na tela escura para nos apresentar a lua, minha madrinha que estava ao lado comentou baixo: "a gente tinha que ver esse filme no cinema mesmo". Sem dúvidas, a experiência de assistir a esse documentário sensorial numa projeção em IMAX se justifica no mesmo segundo em que a jornada começa, elétrica, viva, recheada de emoção, como se estivéssemos decolando sem destino. A imersão é brutal. Não há preparação, introdução, nem vinheta. Brett Morgan nos mergulha numa piscina lisérgica e, a partir de então, não tem mais como sair dela.
"E eu quero ser livre... Você não quer ser livre?", canta em Hallo Spaceboy, canção que nos põe para dentro ainda nos primeiros minutos, já deixando muito claro para a plateia o que podemos esperar do destino. Longe dos depoimentos, negando a cronologia, despreocupado com o impacto histórico, social e midiático de seu protagonista, colocando de lado suas referências, o quê e quem inspirou, este filme não quer nos contar quem é David Bowie, mas o que ele é - na tela, se transforma em pensamentos, filosofia, ele vira o futuro.
Em dado momento, a energia que nos guia sem repouso, e sem respiro, me lembra imediatamente o ritmo caótico do franco-argentino Gaspar Noé. Como o espírito que sobrevoa a existência em Enter The Void (2009) por quase três horas ou como o time de bailarinos que dança até sangrar em Clímax (2018), Moonage Daydream (2022) assume imediatamente que sua missão é levar o filme todo num fôlego só. Para isso preenche cada lacuna, por menor que seja, com música no mais alto volume, com imagens que explodem e se imergem, com sobreposições do artista, além de trechos de seus shows e falas efêmeras que deu em entrevistas sobre a curiosidade que o público e a imprensa tinham a seu respeito. "Esses sapatos são bissexuais?", perguntava alguém no século passado.
Essa jornada dura tanto tempo que chega uma hora que o ritmo nos amortiza, parece que nos conforma, fazendo do próprio barulho algo que às vezes não sabe se repetir. Então até mesmo a conversa sobre arte e indústria (que décadas mais tarde criaria Lady Gaga), realidade e delírio, homem e extraterrestre, entra em looping. Se por um lado confirma ser o pensamento mais profundo de Bowie, por outro lado o gesticula sem folga.
Na experiência exclusiva do IMAX, porém, nada disso se torna um problema verdadeiramente. Na quarta fileira de cadeiras, sob aquela tela imensa, a impressão é que não somos nada - e isso não é mérito da sala em si, pois lembro de ter assistido obras medíocres que não conseguiram ser salvas, como Inferno (2016), de Ron Howard. Entramos nos shows, nos clipes, nas plateias, na TV, nas roupas, nas luzes, nos pensamentos, alegoria de um universo que se opera sozinho. O mérito, potencializado pelo aparato, é da viagem.
É como se a deslumbrante queda no buraco negro de Interestelar (2014) - que também pude assistir em IMAX na época - durasse sufocantes 135 minutos. Eu, mamãe e madrinha saímos da sala arregalados, com espasmos, fomos cruelmente atingidos por aquele alienígena de um filme extraterrestre. Voltamos para casa mas acho que ainda estamos lá.
"Bye, bye, love
Bye, bye, love
Bye, bye, love
Bye, bye, love
This chaos is killing me"
Direção, Roteiro e Montagem: Brett Morgen
Elenco: David Bowie
Animação: Stefan Nadelman
Produtora de Arquivo: Jessica Berman Bogdan
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