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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Em documentário da Globoplay, Luciano Huck se firma como propaganda política

ENSAIO Lançado nesta semana, “Domingão com Huck: A História da História” abre o jogo quanto aos desafios e imperfeições de se fazer TV hoje

Quando assisti Cercados, documentário sobre a imprensa brasileira atravessando o negacionismo em plena pandemia, percebi que tinha algo expressivo mudando dentro da TV Globo, essa marca tão onipresente e contraditória com a qual estamos todos inevitavelmente acostumados. De forma geral, o propósito do filme estendia uma intenção da empresa de apresentar os jornalistas também nessa linha de frente contra o vírus, afastando a figura do comunicador da robustez e do protocolo, mostrando seus lados "civis", informais, e o principal, desprendidos da figura de “Representantes Globo”. Há cenas de bastidor que nunca ganhariam vida pública há 10 anos, como quando William Bonner resmunga visivelmente incrédulo ao receber, na redação do Jornal Nacional, a informação de que o ministro da saúde vai se demitir. Dessa vez, a empresa abre mão da fantasiosa "imparcialidade", quem sabe para prestar contas com seu passado na ditadura militar.


Mesmo que sem o mesmo teor de reflexão pública, este novo documentário da Globoplay sobre a súbita construção do programa dominical após a saída do Faustão tem uma função bem semelhante. Uso a palavra “função” porque o filme nunca esconde o fato de ser uma encomenda, parte da estratégia de colocar Luciano Huck como uma espécie de “embaixador” da Globo, a única pessoa na casa que merecia ocupar o domingo. É um calmante para os investidores publicitários? Fiquei pensando.


Para fazer com que não pareça apenas uma propaganda, o filme toma a decisão de manter cenas de bastidor tal qual aquela do Bonner indignado – surpreende, por exemplo, que a equipe assuma a falta de rumo na construção de um programa "tapa-buraco”, que assuma a fragilidade, a má reação das críticas e até mesmo as falhas e pressões daquele estranho dia de estreia. Luciano aparece de cueca, fala palavrão, trava desentendimentos com seu diretor, tudo para colocá-lo como uma “pessoa comum” que por consequência está na frente de um projeto tão grande.


Dentre todos esses momentos, há um trecho engraçado do ponto de vista institucional, que é a séria construção narrativa de que Huck precisou escolher entre substituir Faustão ou seguir uma despreparada e egoica missão de alcançar a presidência do país – nesse ponto, o apresentador não esconde que esse projeto é feito em parceria com a própria Globo que lhe deu fama como alguém que “entra na casa das pessoas”, e que por isso é possível entender o Brasil.


Sua jornada, viajando da Suíça a Cingapura e EUA com direito a encontros com políticos e artistas, é claramente de uma superficialidade imensa – “como é possível mudar o país?”, pergunta que mais adiante parece ser respondida com sua confirmação literal de que opera um assistencialismo pela audiência. Não ironicamente, é dessa forma que o apresentador se posta diante das câmeras para justificar sua missão de “mudar o país”, e que isso o daria respaldo afetivo para ter a confiança do poder, seja no Planalto, seja nos estúdios de televisão.



É quase uma distopia, se pensarmos bem, a imprensa hegemônica propor que essa narrativa esteja atrelada à forma como acessa o país também de forma desigual – afinal, onde estão as televisões e rádios comunitárias ao longo do nosso extenso território se não enterradas por essa rede que faria inveja até mesmo a Chateaubriand? Por que nenhum governo até aqui, nem mesmo o de Lula, decidiu agir para democratizar o processo de construção de mídia e imprensa?


Domingão com Huck: A História da História, por fim, é muito menos pessoal do que se faz parecer. Funciona mais na esfera da curiosidade sobre o funcionamento de estruturas, formatos e tensões do trabalho desafiador de guiar uma programação semanal e ao vivo. É como um “acerto de contas” sobre a figura contraditoriamente amorosa de Luciano Huck, se para afastá-lo da missão pública de salvar o país contra “o Brasil que se olha no retrovisor”, mas para torná-lo propaganda política da própria TV Globo, alguém que dê para essa ficção uma cara de gente.


Deixando, porém, muito em aberto a forma como a empresa se enxerga no futuro do entretenimento brasileiro, sempre apta à borrar os limites do poder como se fosse um desejo autêntico, essa estratégia, pessoalizada, sentimental e “franca”, claro, faz muito mais sentido neste século onde as poses podem ser mais rapidamente desmascaradas. Porque, então, não tomar a frente e produzir o próprio desmascaramento? Convenhamos, é uma ideia bastante esperta.

 

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