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Foto do escritorArthur Gadelha

De 1967 a 2019, como ressurge o Brasil em Transe

“Pela força, pelo amor da força, colocarei essas tradições em ordem e chegaremos a uma civilização”


A fala acima é de Porfírio Diaz, senador eleito na cidade fictícia de El Dourado no discurso de posse do Império no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. O personagem é motor de uma discussão longa e pouco simplista sobre a configuração do poder na democracia. Lançada em 1967, a obra era uma resposta imediata o golpe de 64 e por isso censurado e interpretado de diversos modos pelas forças políticas.

Se a obra dispõe de um lado conservador religioso e autoritário com Diaz, o outro lado traz a visão de uma esquerda demagoga e populista que não seduzia mais o povo. Nos anos conturbados do Cinema Novo, movimento do cinema político fundado por Glauber Rocha, o grito era mais importante que a razão objetiva. No fim das contas, a obra parece uma desestruturação da consciência democrática na metáfora direta de um país latino-americano que ainda sofre com golpes e autoritarismo.


Na visão da socialdemocracia como ideologia, sua definição primitiva parte do poder entregue ao povo diretamente. Mas a soberania popular, no filme, é constantemente reinterpretada ou subjugada pelos personagens. Em um momento, o caricato Diaz diz que o povo não deve chegar nunca ao poder.


Mas o protagonista dessa história é Paulo Martins, poeta que se distancia de Diaz após perceber que seus planos para o poder do país são outros. Paulo tampouco se sente à vontade de dar apoio ao já mencionado “outro lado”, o governador de seu estado que caminha com o povo em palavras de ordem contra a força reacionária.


Em um dos movimentos de revolta, Paulo cala a boca de um operário que se dizia perdido e que lhe restava esperar a ordem do Presidente. Com a mão sobre a boca do homem, Paulo diz: “Veja como é o povo. Imbecil, despolitizado, analfabeto”. O estado de democracia que Glauber constrói no filme é de caos, de falência de todas as instituições, e por isso ganha força o golpe de Diaz, que pretende estabelecer a "ordem" da civilização.


Nesse estado mental, os direitos democráticos vindos da Grécia são insustentáveis: igualdade, liberdade e participação do poder. Não há democracia, apesar do sistema se acalmar ao pensar o contrário. O que torna a obra viva na discussão sobre a subversão do poder está na indecisão de lados justos ou ideais. Paulo, um simples poeta no meio dessa confusão, parte para revolução armada contra o que crê não representar o processo democrático, e ainda sem o intuito de estar representando o povo.


Quando lançado, o filme recebeu críticas negativas de forças conservadoras e progressistas, foi acusado de ser um filme perigoso por incitar a violência contra regimes políticos. O filme foi censurado pela ditadura militar e só chegou aos cinemas brasileiros após ter vencido prêmios no festival de Cannes e de ter se tornado assunto em vários círculos culturais pelo mundo. Inclusive, muitos o apontam como um dos incentivadores do maior golpe contra a liberdade, o AI-5, que expurgou a expressão artística do país. Ou seja, em El Dorado e no Brasil, não havia democracia em qualquer dos seus aspectos. São várias as interseções entre o país fictício de 1967 e o Brasil de 2018 eleitor do Bolsonaro. A ideia neoliberal messiânica, a desinformação por uma mídia elitista, partidos políticos populistas, abertura à constante segmentação de trabalho promovida pelo capitalismo.


Em Terra em Transe, há conflitos políticos como estado mental de transfiguração da nação. Uma configuração sem qualquer fuga, perdida, sem interesse em quaisquer dos direitos democráticos. “O meu desígnio é Deus. O meu princípio é a pureza do caráter, a ordem da nação” – o discurso de Diaz, certo que seu projeto religioso faz parte do processo democrático, nos lembra muito outro personagem do cenário político brasileiro. Um personagem eleito presidente da república que, assim como Diaz, chegou ao poder prometendo ao povo uma integridade destruída pela desordem social.


Não ficamos muito tempo após a “resolução” de Terra em Transe para saber o que acontece – apesar de uma elipse assustadora, assim como agora, dia 7 de janeiro, não temos como imaginar os rumos. No entanto, saber como chegamos aqui já é um caminho absolutamente importante.


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