Arthur Gadelha
Com música e destruição, ‘Coringa: Delírio a Dois’ é uma piada suicida
★★☆☆☆ Sequência do fenômeno de 2019, novo filme de Todd Philips nunca deixa de ser um projeto
“Este tribunal não é seu palco”, balbucia o juiz quando Arthur Fleck puxa uma cadeira para se sentar diante da bancada do júri. A fala se refere a That's Entertainment, belíssima canção famosa na voz de Judy Garland, que invoca o inverso quando clama no seu ápice que o mundo inteiro “é um palco”. Fleck, de traje e maquiagem à rigor do personagem, não retruca, pega o microfone e continua sua cena. Algo está errado. De repente, desmorona, descaradamente.
A cena, em si, mesmo tão silenciosa e sem força própria, poderia soar genial no contexto de um personagem que faz da máscara o seu próprio rosto, que tem a moralidade espelhada na ironia do palhaço, na tragicomédia de um bobo-da-corte que pode zombar do rei. Mas na tela de Todd Philips a humanidade não consegue existir. É truncada e boba. A razão disso é, tragicamente, o motivo da sua comédia: “Coringa: Delírio à Dois” é uma espécie de anti-filme, contrário não somente ao legado de sua história original, mas ao que fizeram dela. Existe para não querer existir, como a sombra de um suicida.
É, essencialmente, Todd Phillips rindo de todo mundo. Rindo de quem gosta do primeiro e também de quem odeia, rindo tanto de quem esperava novas perguntas quanto de quem esperava uma resposta. Chama todo mundo para o centro do palco e apaga as luzes – essa é a piada. A conversa rasa sobre um homem feito de refém pela sociedade de Gotham é espremida para que perca o sentido e, contraditoriamente, vire discurso. Ao longo de quase 140 minutos, a conversa tenta se reciclar pelo viés mais interessante do projeto, a música.
Na pele de uma Arlequina discreta, Lady Gaga assume a tarefa de encaixar música nesse universo obscuro com uma naturalidade que é, de fato, bonita e começa com uma potência impressionante. Sua sinergia com Phoenix é imediata, embora o tempo de interação seja mínimo, mas ao redor tudo parece calibrado – seja numa luz radiante que toma o ambiente para dar o tom da fábula ou nas cores, melodias e até coreografias que surgem delicadamente, sem assustar.
A primeira vez que Joaquin Phoenix canta e dança em meio aos detentos de Arkham, é de uma beleza inebriante. Longe de acionar um modo automático, o ator consegue encarnar uma reconstrução do próprio personagem que arrepia em momentos pontuais, numa imersão que parece maior até do que o próprio filme.
Gaga, a cantora profissional do elenco, pouco tem destaque. Talvez sua cena mais emocionante seja a primeira, quando cantarola Get Happy enquanto encara Coringa com ânimo à flor da pele. No campo coadjuvante, quem brilha mesmo é Brendan Gleeson como um carcereiro que media Fleck de sua própria violência com uma fisicalidade intimidante.
É preciso dizer também que a construção cênica dos delírios musicais é feita com grande cuidado, colocando sua audiência dentro de um palco que é sempre efêmero e solúvel. Quando todas essas peças já estão montadas, porém, o filme vai revelando que não tem algo a dizer, propriamente, criando a narrativa de que sua maior ironia é o vazio e a repetição.
Ao mesmo tempo, há uma coragem impressionante na escolha que Philips e Scott Silver traçaram para essa história que tenta arbitrariamente se destruir, como se tudo não passasse de uma caríssima resposta carregada de rancor sobre os significados do Coringa e sua moralidade. Há algo sobre a mitologia dos heróis e a conivência cínica da mídia e de sua audiência, mas nada muito diferente do que já não estivesse explícito na trama anterior. O que esta história tinha de inédito em mãos era a fábula, e ela evapora.
A antipatia macabra que toma conta do seu interminável ato final certamente vai dar o que falar e alimentar uma série de discussões e reações fervorosas, não porque cria uma explosão, mas porque a destrói. Essa piada é tão fúnebre que me faz pensar em Philips com um mérito imoral fascinante – porque mesmo vindo de um grande sucesso em bilheteria e prêmios, com direito ao Leão em Veneza e Oscar nos EUA, mesmo com uma legião de fãs dos quadrinhos, mesmo reunindo um grande ator com uma grande figura da música, ‘Coringa: Delírio a Dois’ escolhe não ser amado.
The clown with his pants falling down
Or the dance, that's a dream of romance
Or the scene where the villain is mean
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
The stage is a world of entertainment
Texto fabuloso, apesar de eu discordar sobre a substância do discurso do Phillips aqui. Eu comprei a ideia e gostei rs