Arthur Gadelha
Amor Estranho Amor (1982): intenção e a prática do dilema
Em retrospectiva do cineasta Walter Hugo Khouri, Canal Brasil exibiu pela primeira vez o "filme proibido pela Xuxa"
"A casa é dele, a polícia é dele, o poder é dele"
Quase como as viagens ao passado de Charles Foster Kane, na trama de Amor Estranho Amor, Hugo volta para um antigo casarão em que viveu dias profundamente inesquecíveis na infância, quando aos 12 anos descobriu que sua mãe (Vera Fischer) morava num prostíbulo vinculado diretamente aos homens da alta cúpula política do país pré-Estado Novo. Em meios às suas idealizações maternas e a inocência perante a sexualidade, Hugo tem sua percepção virada de cabeça para baixo quando é induzido a se relacionar com as mulheres adultas que vivem ali - uma delas, interpretada por Xuxa, garota de 19 anos "virgem" que será dada de presente a um político "importante".
Esse filme é uma mistura muito estranha de admiração e choque no que parece ser uma intenção duvidosa. Não é cinema de guerrilha, não é cinema de TV, não é pornochanchada, e dramaticamente é incrível: o jogo cênico, as movimentações deslizantes de câmera para pôr em evidência os personagens e os espaços luxuosos, é tudo de um requinte cinematográfico impressionante. Faz o ritmo nunca soar exagerado ou tolo, apesar da polêmica fragilizada de substância que ronda o contexto e conteúdo do filme. Um exemplo de excelência é a longa sequência da festa do Dr. Benício, onde a montagem dos núcleos e acontecimentos paralelos costurados pela trilha sonora "ao vivo" constrói uma áurea de suspense, quase um thriller que lembra a cena da ópera em Missão Impossível 5. O jogo de mistério, luzes e sombras, os planos com profundidade e a trilha posterior de "estranhamento". De fato, a direção de Walter Hugo Khouri honra esse seu legado subestimado e quase póstumo no Cinema Brasileiro.
Ao redor desse contexto do casarão, há um Brasil acontecendo que vira o subtexto quase central dessa história. A classe política dominante teme a virada de chave para a chegada do Estado Novo e não há cena mais emblemática dessa sensação do que a paranoia de perseguição, desmoralização e "espionagem" que paira sobre Benício quando se sente observado em um dos quartos.
Durante esse processo, Hugo está lá tentando entender essa realidade completamente alheia enquanto é constantemente assediado até que essa aproximação vire explícita. A questão, evidentemente, não é invalidar a dramatização ao redor dos pré-desejos de crianças e nem mesmo das relações incestuosas já que são temas que atravessam as ficções na história da humanidade. O que pega na polêmica é a intenção e a prática, dilemas que deixam qualquer espectador desse século (e desta década) amplamente conflitados na contradição. Afinal, não deixa de ser um homem adulto roteirizando erotismo ao redor do desejo de um garoto e, nesse processo, as interpretações das prostitutas soam infantilizadas ao serem filmadas com uma clara intenção de sensualidade dentro da narrativa. E, claro, também não deixa de ser um ator de 12 anos contracenando cenas de sexo com atrizes adultas - Vera Fischer tinha 30 anos. Então o conflito do drama vira um conflito do mundo real, e essa construção parece acusar certa intenção de escândalo fetichizado na autoria e na concepção desse filme na forma como ele é.
Também é curioso perceber, ao assistir o filme finalmente, que embora a polêmica tenha girado em torno da proibição de Xuxa, sua cena nem é tão chocante quando a final com Vera Fischer (que inclusive tem uma interpretação admirável, trabalhada numa posição madura e controlável que também expõe a vulnerabilidade da sua personagem ao oscilar entre os mundos da política, do sexo e da ingenuidade do próprio filho). E também é sintomático em todo esse contexto que tantos outros nomes "de ouro" da TV brasileira estejam no filme, mas que a mídia e público esquivaram da discussão: Tarcísio Meira, Mauro Mendonça, Rubens Ewald Filho... Mas tudo o que se fala, com olhar julgativo e culposo, é sobre as mulheres e suas cenas dirigidas por Khouri... Amor Estranho Amor, com certeza, é mais que essa discussão, mas os conflitos estritamente práticos de Khouri são absolutamente incontornáveis. Ou seja, um filme que, na filmografia brasileira, tanto é um capítulo marcante quanto uma pedra no sapato.
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