Arthur Gadelha
Amor de Mãe #01: Manuela Dias faz a Globo respirar em horário nobre
A cada episódio de sua primeira semana, “Amor de Mãe” provou-se uma peça estrangeira no horário da emissora
Minha mãe diz ser uma boa noveleira porque “assiste até novela ruim”. Estava ansioso para saber sua opinião sobre a nova aposta da Globo para o horário das 21h, principalmente por eu compartilhar de uma suspeita geral de que essa obra teria uma forma muito distinta das narrativas construídas pela emissora.
“Não gostei não… Muito sofrimento”, ela me resumiu suas impressões sobre o primeiro capítulo. Ali se confirmava uma sensação de que a forma Manuela Dias de se dramatizar a realidade poderia ser “pesada demais” para entreter milhões de brasileiros que chegam cansados do trabalho. No segundo dia, porém, foi ela quem puxou assunto para falar de como a novela tinha se transformado ao ganhar mais camadas de tramas e personagens. Ao fim de sua semana de estreia, Amor de Mãe parece confirmar todas as boas suspeitas sobre sua qualidade técnica e especialmente narrativa, mas, afinal, o que essa obra tem de tão especial, desta vez falando de forma prática?
Estamos falando de “Justiça” mesmo
O plano-sequência que encerra o primeiro episódio, exibido no dia 25 de novembro, acompanha Magno (Juliano Cazarré) caminhando por um rua engarrafada devido um acidente de trânsito. Ao passar por motos, carros e ônibus, ao fundo Vitória e Thelma passam por ele, enquanto Magno parece representar Lurdes, sua mãe na trama - é o momento que, sutilmente, as mães dessa história se entrelaçam pela primeira vez na tela. Essa sequência deixa claro a suspeita de que Amor de Mãe seja um herdeiro legítimo de Justiça, minissérie que Manuela Dias escreveu em 2016.
As três mães, apesar de possuírem dramas amplamente distintos, têm suas vidas cruzadas pelo destino de seus filhos - é o tipo de construção que Justiça, por exemplo, se apoia. O passado dessas mulheres não são apresentados como uma “fase 1” da novela, algo que se tornou muito comum nas últimas apostas da TV. Eles são evocados como detalhes de suas memória, partes integradas às suas identidades. Por isso dura pouco, como uma breve lembrança: o roubo do filho de Lurdes, o incêndio que Thelma perdeu o marido, a perda da gravidez de Vitória. Aqui o destaque não tem como não ir para a história de Lurdes, com uma bela participação de Lucy Alves ao criar paralelos sutis com a atuação de Regina Casé, sua Lurdes do futuro.
Manuela deixa muito claro que esses dramas são apenas pontos de início para as possibilidades dessa história que todo dia apresenta novos personagens com novos conflitos. As mães não são os fins e, talvez por isso, tudo que se esperava da trama esteja acontecendo tão rápido - novas páginas inesperadas virão por aí.
Com outras caras
Ali no primeiro plano da novela está claro uma proposta de imersão corajosa que ataca de forma sutil toda a formalidade de estúdio comum às novelas Globo. Na imagem acima, Lurdes está em desfoco com o plano. Após alguém chamá-la, aproxima-se entrando lentamente em foco. Ao sentar-se, parece olhar quase que diretamente para a câmera num plano central nada usual em narrativas de TV. Mas é a ideia é essa mesmo: Lurdes se senta diante do Brasil para contar sua história. Aquela Regina Casé não é Val de Que Horas Ela Volta?, apesar dela e Lurdes terem o mesmo emprego e dividirem o mesmo sotaque. “A Lurdes é depois que acabou o filme”, disse Regina em uma entrevista se referindo ao filme de Anna Muylaert.
O plano/contraplano frontal volta a se repetir na rotina da novela, como na conversa entre Lurdes e Thelma no restaurante. Como já citado anteriormente, a fotografia de Walter Carvalho com direção de José Luiz Villamarim aposta numa construção visual que dialoga diretamente com o espaço urbano, estabelecendo uma proximidade afetiva com essa penca de personagens carismáticos. Num gesto de trazer à novela uma sensação de imersão, apostam em planos-sequências sufocantes - além do já citado que acontece no trânsito ao fim do primeiro episódio, há também um na escola em que Camila dá sua primeira aula: enquanto tenta dialogar com a classe, um tiroteio inesperado interrompe a aula. Ela e os alunos se abaixam correndo desesperados para o corredor, movimentação que é toda registrada em sequência, carregando ainda mais drama a uma clara crítica ao estado de violência no Rio de Janeiro e, talvez especificamente, ao governo de Wilson Witzel que está impulsionando os ataques aéreos às periferias da cidade.
Não tem como sabermos se essa cara amplamente trabalhosa na imagem, som e narrativa dramática, permanecerá na identidade da novela até o miolo e seu desfecho, mas o produto enquanto novela parece não querer abrir mão disso.
Destino, vilão da vida
Confirmando a fala do diretor José Luiz Villamarim sobre a ausência de um vilão específico, o conflito paralelo mais sedutor da trama nesses seis primeiros episódios é, sem dúvidas, o de Magno, filho de Lurdes que por um descaso urbano acaba matando um homem durante uma briga. A dúvida é imediata: não houve testemunha e Magno é pobre, então relatar a polícia não parece uma opção possível. Lurdes, a boa mãe, não tem outra escolha a não ser envolver-se diretamente com a história para proteger o filho.
Magno é vivido por Juliano Cazarré, ator competente que a Globo parece nunca saber usá-lo, já que é no cinema que o seu potencial está à mostra. Em Amor de Mãe, há uma construção bonita em torno de sua personalidade porque sua figura robusta contrasta com um jeitão tímido, acanhado, "meninão" traumatizado. Bobo também, ao atender o telefone do homem que matou, envolver-se com sua mãe e irmã - a enfermeira que cuida de sua filha doente. Uma simples chave vai se expandido nas mãos de Manuela, fazendo com que esse conflito se expanda em níveis de difícil compreensão: quem está certo ali? Lurdes e Magno são agora vilões por enganarem e se envolverem, de forma ingênua, com a família do homem cuja morte ajudaram a acobertar? O mais interessante é que não tem como supor para onde essa trama vai.
Mães são o conforto e o conflito
Essa trama de Magno ajuda a complexificar o modo como Lurdes, por exemplo, encara a própria realidade. Em seu contexto de marginalização urbana, apoiar um crime e deixá-lo sem explicação é a única narrativa cogitável. A mãe boa agora esconde um segredo cruel, forçada a refletir sobre isso ao ter que receber a irmã do morto na própria casa.
O drama em torno de Thelma sempre parece estar ao ponto do cansaço porque fica girando em círculos: seu irmão quer vender o restaurante, enquanto ela esconde sua doença do filho que ama perdidamente. Adriana Esteves é incrível ao incorporar fragilidade a tudo que Thelma é. Só conhecemos essa Thelma triste, ansiosa, sem rumo. Seu filho Danilo, vivido por Chay Suede, não chama atenção inicialmente por uma presença tímida, passiva e submissa à figura materna. Ele tem um jeito bobo do mimo, situação que entra em evidência como conflito ao levar um fora da namorada (Camila Márdila). O problema de Danilo é que ele é parte da mãe, como corpo mesmo. A inesperada morte do irmão de Thelma, Sinésio (Julio Andrade), parece ampliar essa situação.
Vitória (Taís Araújo) é a mãe que mais dualiza esses campos. Sonhando com adoção ao fim do próprio casamento, a personagem é construída com a dúbia roupagem de uma vilã social, daquelas personagens que integram uma força opositora que nem tem ligação com interesse pessoal - ou você acha que a família rica de Parasita (filme de Bong Joon-Ho) não é vilã por não estar “fazendo mal” a ninguém? Seu drama amoroso em busca do filho compartilha complexidade com sua atuação no direito, ao defender um grande empresário corrupto vivido por Irandhir Santos. Aqui fica meu maior ponto de interrogação: o que Manuela propõe discutir com uma protagonista tão rica num enredo que objetifica a polarização de classe social?
Fragilidades de uma trama sem substância
É curioso que nessa novela o núcleo rico seja o que menos importa. A Vitória de Taís Araújo nem entra nessa percepção, porque seu drama em torno do filho supera sua frágil influência nesse meio específico da trama. Mas a pouca expressividade dessa parte da história não se dá por um gesto político de Manuela em expôr a mesquinharia de personagens que vivem o drama de serem simplesmente ricos, mas porque é um núcleo acessado apenas como artifício de montagem, evocando um Irandhir Santos que não oferece qualquer traço de relação - seja apenas como o vilão corrupto, ou seja com complexidades presentes em todos os outros personagens, mas aqui elemento esquecido.
Pouco pode se dizer de Raul (Murilo Benício) que se veste de cafajeste rico, porém respeitoso, que se envolve com Erica, filha de Lurdes. Ou seja, há uma vontade muito grande de Manuela em causar essa disparidade social ao conectar essa realidade às mães-títulos (como a cena do dinheiro achado na praia que é de um humor caloroso), mas ainda não há um tom delicado para estabelecer esse diálogo narrativo. Ok, sabemos que personagem ricos definitivamente não são a especialidade de Manuela Dias - sabe que, olhando de longe, isso pode até ser uma coisa boa?
E enfim?
Por fim, a primeira semana de Amor de Mãe parece ter mostrado ao que veio - ou pelo menos, ao que pretende vir. Além de apresentar os principais dramas de suas protagonistas, a história alcança certa liberdade ao multiplicar os conflitos que se desdobram como uma boneca russa. Vitória descobriu estar grávida no dia em que adota seu primeiro filho. Kátia, a mulher que roubou o filho de Lurdes, tem alguma dívida com Vitória. Thelma fica na expectativa de uma vida sem Sinésio e mais próxima da morte. Muito para descobrir.
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