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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Sem estátuas, “A Viagem de Pedro” repagina um herói que anda em círculos

CRÍTICA Estreia de Laís Bodanzky nos filmes de época está, corajosamente, mais próximo à indiferença

Filmando desde os anos 1990, Laís Bodanzky tem feito filmes sobre o Brasil. Marcando o começo do século com a assustadora adaptação da história de Austregésilo Carrano Bueno, Bicho de Sete Cabeças (2000) se tornou um filme estrutural no pensamento intelectual, estético e social do cinema brasileiro ao aproximar um país constantemente violento quanto à presença das drogas à sua negligência no tratamento da saúde mental. Depois passeando pelo carinho do samba em Chega de Saudade (2005), sua trajetória vai abraçar até as famílias de classe média que operam seus espaços em As Melhores Coisas do Mundo (2010) e Como Nossos Pais (2017). Nos últimos anos, ainda produziu os documentários Ex-Pajé (2018) e A Última Floresta (2021), dirigido pelo seu parceiro de roteiro Luiz Bolognesi sobre narrativas indígenas. Mesmo que, à sua maneira, essa filmografia com mais de 20 anos abrace diferentes países num só, nenhum filme parece tê-la preparado para este novo capítulo na leitura de um Brasil que vive dando errado.


Em A Viagem de Pedro, Cauã Reymond dá corpo a Dom Pedro I em 1831 quando partiu do Brasil rumo a Portugal para disputar o trono que seu irmão havia tomado. Junto de Amélia (Victoria Guerra), com quem havia se casado recentemente após a morte de Maria Leopoldina, ele esperava reconduzir a filha ao poder no outro continente. Na longuíssima espera do navio, porém, ele se vê sem saída numa crise egóica sobre o que significa ter a própria existência ameaçada enquanto sua manutenção é cercada de privilégios.


Dos que Laís dirigiu, produziu e escreveu, este é provavelmente seu filme com mais perigos porque, apesar de posta a liberdade de fabulação sobre essa personalidade, são muitas as armadilhas quase inevitáveis de tomar na busca por esse “retrato histórico”. Felizmente, a trama nunca se torna um emaranhado de burocracias formais ou daqueles diálogos políticos que se esvaziam no momento em que são recitados em poses falsas do nosso imaginário de quem eram aquelas pessoas e como elas se portavam. Já na primeira cena essa contradição entre ato e representação é narrada até com certo humor na tola reverência à essência das estátuas.


Victoria Guerra

A Viagem de Pedro está, portanto, distante das narrativas Globo (apesar de coproduzido por ela) que tratam o Brasil histórico dentro dos moldes romantizados nos livros do começo do ensino fundamental – cenário que pudemos assistir este ano no folhetim Nos Tempos do Imperador (2021). Nesses termos, seu filme está curiosamente mais próximo da “sujeira” que Marcelo Gomes e Carla Camurati fizeram, respectivamente, com Tiradentes e Carlota Joaquina nas revoltas coletivas ou míopes de um país enguiçado.


A diferença dessas obras tão distintas citadas acima é que Laís nunca permite ao seu filme uma dosagem de humor, seja ele de qual espectro for, deixando que o próprio vazio daquela figura máscula se perca na obsessão. Cauã embarca nessa representação, longe da estátua, sem o compromisso de tornar seu personagem apaziguado ou rebelde, apesar de estar inevitavelmente ao centro da discussão, tão irritado e perdido que a empatia nunca se torna uma opção.


Isso não significa, porém, que o filme seja assim tão complexo na construção desse personagem e de sua realidade. Pelo contrário, é até modesto diante dos poucos elementos que dispõe para desenvolver sua angústia como algo relevante. Dá uma sensação, porém, de que esse caminho faz mais sentido do que as abordagens meramente "históricas" que se propõem a traduzir os acontecimentos em ordem consequencial. Corajosamente, a proposta deste filme está mais próxima da indiferença.


Na clausura do navio, era de se esperar que o roteiro fosse buscar delírios e memórias para fugir dali, passo que a história dá não para apresentar camadas políticas acerca do Brasil em contraditória construção e falência nas mãos do país colonizador, mas para dar o grau decadente desse personagem e suas fissuras de guerra. “Como é que eu vou ganhar guerra de pau mole?”, grita, todos escutam. Nesse sentido, a paranoia de Pedro com o cozinheiro africano, a revolta em torno de sua própria virilidade e a indiferença em relação às mulheres da sua vida, são elementos que vão circulando em queda livre como constatação de sua alienação.


A Viagem de Pedro - Crítica - Laís Bodanzky
Sérgio Laurentino e Cauã Reymond

Enquanto o Pedro de Cauã é esse personagem constatado, ao redor outras presenças dão sobrevida ao abismo repetido da nação dentro daquele navio apertado. Isabél Zuaa, Welket Bunguê e Sérgio Laurentino formam um trio de quase antítese à confiança falha do ex-imperador, adicionando disfarces para gerir aquele contraste de posições. Para guiar o discurso, Pedro J. Márquez fotografa esse espaço como um só, apesar das distâncias físicas e morais que operam na interminável trajetória, fazendo dessa missão um sufoco completamente à parte do futuro objetivo em terras portuguesas.


O ritmo da história está ciente desse cansaço programado, mas vai insistindo nisso como narrativa destrutiva de um filme que precisa acabar a qualquer minuto. Aos poucos, o contexto vai se tornando meio conivente, contentando-se com a limitação de seus personagens, cenários e delírios. Esquivando-se de discursos prontos, porém, A Viagem de Pedro deixa alguns rastros de reflexão ao espectador brasileiro desse século XXI sem exigir cumplicidade ou qualquer reconhecimento real com as dúvidas inconsistentes daquele homem. Longe desse diálogo, a jornada põe à disposição uma fantasia sobre o que era ter tanto poder naquele tempo sem perceber a tragédia em que o Brasil havia se tornado.

 
 

Direção: Laís Bodanzky

Roteiro: Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi e Chico Mattoso

Fotografia: Pedro J. Márquez

Montagem: Eduardo Gripa

Produção de Elenco: Patricia Faria

Direção de Arte: Luísa Pollo

Elenco: Cauã Reymond, Welket Bungué, Isabél Zuaa, Sérgio Laurentino

País: Brasil

Ano de Lançamento: 2022


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