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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Tiradentes: "A Mesma Parte de um Homem" oferece uma ficção da clausura

CRÍTICA Clarissa Kiste e Irandhir Santos dividem o palco num modesto jogo de invenção


Quando apresenta suas personagens, Ana Johann toma um cuidado muito específico para entregar o suspense daquelas vidas totalmente submissas ao espaço claustrofóbico - tanto pela casa apertada, fria e escura, quanto pela névoa nas montanhas afora que denuncia: essas mulheres estão sozinhas. É a partir dessa configuração que Ana se aventura num drama atípico sobre os limites da "invenção".


Mãe e filha vivem no suspense de uma ameaça "invisível", sensação que expõe uma vulnerabilidade profunda no modo como interpretam a clausura, a aflição, o desespero, fazendo lembrar o pai e filha que vivem na espera que o mundo acabe em Cavalo de Turim (2011). Em ambos os filmes, uma personagem se sustenta na outra não apenas como forma de proteção, mas também para manter a própria suspensão, uma espécie de temor compartilhado que precisa manter o ritmo.


Diante dessa perspectiva sólida, chega um homem "sem nome e sem história" que acaba incorporado àquela prisão - se já não bastasse ser física e psicológica, dessa vez se torna também uma prisão inventada. O desconhecido "ganha" memórias alheias e, aos poucos, Johann nos convence que sua corporificação é progressiva. Vivido por Irandhir Santos, porém, o personagem vai ganhando uma complexidade bem interessante até, de certa forma, "explodir" silenciosamente.


A construção dessa "mesma parte de um homem" talvez seja a coisa mais interessante na suspensão, porque é um personagem que se torna conflito por conta própria. Não é só um personagem para nós e para mãe e filha, mas principalmente para ele mesmo. É um exercício muito interessante de roteiro e interpretação que testa a nossa percepção enquanto espectador - então essa história já começou deturpada e nós... não percebemos? É o tipo de brincadeira que empolga.


Se interpretarmos essa história sem origem, então a exploração do outro é uma experiência mútua desde que esse homem surge? Essa reflexão alcança uma conversa sobre a utilização consentida (em que nível?) dos corpos, e que justifica o "sexo" ser um elemento central no conflito que transforma o rumo de todos os personagens. Então meio que sem clímax (ou talvez aquela frágil sequência da floresta tenha sido criada como tal) esse nó se desfaz.


Enquanto essa ficção se constrói, há uma transformação acontecendo sem dar as caras, e aqui preciso destacar a performance pulsante de Clarissa Kiste que nunca deixa a aflição se perder nesse processo. Aquele medo da solidão, do futuro, a dúvida de pertencimento e a crise de proteção sobre a filha são elementos que nunca somem do seu rosto, da sua voz. Quando a ficção do homem misterioso é finalmente revelada, e quase que imediatamente abandonada, há uma superação também da "ficção de enclausuramento" que era a vida dessas mulheres há muito tempo. O sorriso entregue à filha e o carro que some nas árvores é, de certa forma, uma mensagem de ruptura. O filme de Johann existe porque o abandono do homem impulsiona uma libertação generalizada na vida de suas protagonistas. É por isso que a evidência na narrativa de submissão que há ainda na introdução é tão relevante para a construção.


A esperteza dessa teia de acontecimentos entre ficção e "realidade" também põe o roteiro, ora engenhoso, num estado de tamanha confiança que ao redor os elementos estagnam. Não só a forma como a revelação tenta emular uma tensão abrupta, mas também na ausência de maiores potências ao redor da dúvida. O jogo é apresentado e comprado com muita facilidade para que as coisas caminhem - e, claro, também há benefícios se considerarmos que o homem sempre foi um jogador e não apenas peça do tabuleiro. São contradições que fazem o filme e suas interpretações pulsarem na plateia. Com seus pesares, A Mesma Parte de um Homem consegue se manter num estado onde desejo, medo e esperança convivem de forma envolvente e tão ameaçadora que hipnotiza.

 

★★★

Direção: Ana Johann

País: Brasil (PR)

Ano: 2021

 

Essa crítica faz parte da Cobertura da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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