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Foto do escritorArthur Gadelha

Ouro Preto: "O Ano da Morte de Ricardo Reis" aproxima poetas em trânsito

"Os mortos são piores que os velhos"


A forma fantasmagórica como João Botelho leva as páginas de Saramago para essa Portugal nevoada me lembra uma obra bem distante, Macbeth: Ambição e Guerra (2015), em que Justin Kurzel aposta na robustez do texto como uma estratégia "classista" em torno da hipótese de que seu público interpretará uma conexão respeitosa com a intenção da homenagem. Mais que isso, Kurzel e Botelho usam essa ferramenta como justificativa para a elaboração de um cenário quase plástico, a imersão em luzes e movimentos que fazem com que a realidade transite entre a esfera teatral e fotográfica, de um dito mundo real. São ideias espertas porque assumem a ilusão, um devaneio que possa ser a base de tudo o que está se vendo (e ouvindo), sem que o absurdo precise ser, em si, um elemento alienígena.


No corpo de Chico Diaz, Ricardo Reis volta a Portugal após um exílio de 16 anos no Brasil, fugindo das revoluções, como sempre faz, e descobre duas coisas: que seu criador, Fernando Pessoa, faleceu, e que, apesar de vivo, ele mesmo parece um fantasma tal qual o morto. Ao dividirem conversas, Reis não sabe se há algum significado nos rumos que está cursando. Nesse jogo quase recreativo sobre a ironia de um "forasteiro" em terra natal, o personagem finge entender as existências políticas ao mesmo tempo em que se faz vítima.


Diante dessa tontura, a performance de Diaz constrói um Reis sempre desorientado, assustado e inquieto, em contraponto à quase indiferença do morto Fernando (Luís Lima Barreto); entre criador e criatura, as longas conversas são sempre sobre o que lhes transcendem, que é o mundo lá fora. Do "outro lado", estão seus envolvimentos românticos; Lídia e Marcenda, vividas por Catarina Wallenstein e Victoria Guerra, compõem uma trama essencial para perceber o enigma existencial por qual todos os personagens estão passando.


A dificuldade dessa obra, no entanto, é sua trajetória sisuda e tão devota à "poesia objetiva" que o ritmo se perde no rigor absoluto. Claro, essa é uma percepção contraditória se levantarmos uma discussão sobre o cruzamento de linguagens, mas nem parece que a obra se veste desse conflito - porque, apesar disso, a forma como essa história é contada soa bastante honesta. A eloquência de Diaz encontra engasgos elaborados pela própria intenção cênica, e a emoção, ou afeto, são sensações que caminham na iminência de desaparecerem a qualquer momento na longa duração.


Nesse jogo entre a admiração - pela fotografia sufocante, a música charmosa -, e o cansaço dos conflitos desse médico alheio, pulsa um sentimento agridoce de pertencimento e repulsa sobre os pensamentos complexos e solitários de Reis. Suas despedidas ao amor e as "revoluções", por exemplo, são apresentadas de formas protocolares, mas também há algo muito forte na frieza que resta dessa subtração. Pela forma como se dão os rumos indiferentes de O Ano da Morte de Ricardo Reis, é como se Botelho assumisse a possibilidade de que nada ali realmente seja relevante além da ironia de um personagem que conversa com seu criador falecido. Um filme que se vale pela curiosidade, pela incontornável relação com o material original, e pelas perguntas que deixa sobre o que é pertencer a uma cidade enquanto nega seu próprio movimento.

 

★★★

Direção: João Botelho

País: Portugal

Ano: 2020


Filme assistido na 16ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

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