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Grand Theft Hamlet: uma desleitura

Foto do escritor: Manoel Moacir Rocha Farias Jr.Manoel Moacir Rocha Farias Jr.

Em meio à pandemia de COVID-19, três atores decidem encenar a peça Hamlet, de Shakespeare, no ambiente virtual do GTA (Grand Theft Auto), uma série de jogos criados a partir de 1997 em que basicamente se cumprem missões de roubo e assassinato, numa fuga implacável contra a polícia. A essa ambiência do jogo, que eu desconhecia, fui apresentado pelo filme dirigido por Pinny Grylls e Samuel Crane.


Esse desconhecimento me fez ver o filme com olhos de quem estranha a dinâmica das mortes, e são muitas, e a relacioná-las com a própria dinâmica da peça original, em que as últimas cenas são um verdadeiro banho de sangue. O fato é que o “GT Hamlet” acaba por sugerir um paralelo entre a violência shakespereana e a do jogo. Da primeira , se diz que surge da própria relação com o público da época renascentista, que teria sua atenção presa por mistérios, intrigas e agressividade, especialmente, entre homens poderosos (ou que anseiam o poder). Da segunda, podemos relacioná-la à gratuidade do mal, da vida que se joga e perde sem maiores alardes, num cenário que nos remete a um capitalismo neoliberal, no qual o social se esfacela e predomina o culto do individualismo competitivo. Inclusive no mundo do crime de GTA.


Assim, “GT Hamlet” consegue dialogar com a peça original, não para celebrá-la , mas para insinuá-la por meio de fragmentos. Consegue mostrar, em meio ao caos de sua própria tentativa de encenação, uma nova leitura para as questões existenciais do príncipe Hamlet. Se “há algo de podre no reino da Dinamarca”, essa podridão continua nas relações esfaceladas do jogo. Se “ser ou não ser” era questão original, ela ainda se mantém presente nas cenas do filme.


Nesse sentido, o filme faz uma operação de desleitura, nome que Anne Ubersfeld¹ dá à operação de reescrita de clássicos, que faz parte de grande parte do teatro do século XX, momento que as artes de maneira geral, reinventam suas próprias tradições de representação.


Cabe aqui um questionamento da própria comicidade, na maior parte do filme e sem dúvida presente grandemente em seus momentos finais. A divulgação pela plataforma de streaming que o exibe no Brasi tem enfatizado esse lado, o do riso e do pastiche. Eu, de minha parte, reconheço (talvez pelo desconhecimento do jogo e sua gramática) seu lado subversivo e atual, em que a comédia cede lugar à tragédia original. Para isso, bastaria lembrar o contexto de sua produção, uma pandemia.


Manoel Moacir é professor na Universidade Federal de Campina Grande. Escritor e performer.


1: Ver a esse respeito: UBERSFELD, Anne. A representação dos clássicos: reescritura ou museu. Revista Folhetim, Rio de janeiro, n. 13, p. 8-37.abr. 2002.

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